(1685-1753)
BERKELEY
(1685-1753)
A história da filosofia dá-nos às vezes a vertigem do mito de Sísifo, que Camus aplicou à condição humana. De Pitágoras aos nossos dias, os filósofos rolam continuamente a pesada pedra pela encosta da montanha até o cume, e lá chegando, ela se despenha de novo. Mas quando a encaramos na irredutível dualidade dos seus problemas fundamentais, ela nos lembra da águia de Prometeu, transformada também numa imagem alada do desespero. É como se a águia, para atingir o fígado do herói que roubou o fogo do céu, tivesse de atravessar uma série de desfiladeiros entre as montanhas do Cáucaso. Entalada nas rochas de uma garganta, mal escapa dali para cair imediatamente nas tenazes de outra.
Não se trata de um mito ou de uma simples alegoria. Platão tinha razão: há coisas que não se podem explicar senão através do poder expressivo das imagens. A partir de Pitágoras, que arrancava o pensamento do mundo órfico para levá-lo à luz da razão, a filosofia é como a águia presa entre as rochas da razão e da fé. Depois vemo-la a se debater entre a imutabilidade eleática e a instabilidade heraclitiana.
E a tortura continua através dos séculos: Sócrates e Protágoras a seguram entre a verdade e a dúvida; Platão a prende na dialética do inteligível e do sensível; Aristóteles a comprime entre forma e matéria; os neoplatônicos e os medievais novamente a prendem entre a razão e a fé; Descartes a entala no desvão das suas substâncias; Espinosa a encrava entre a substância e os atributos; Locke a enrosca novamente entre o sensível e o inteligível, mas em garganta ainda mais estreita que a platônica; e Berkeley, por fim, tentando libertá-la, prende-a outra vez na vertigem de um desfiladeiro que se eleva até o céu, entre a mente de Deus e a frágil mente humana.
Dessas alturas, a águia atônita vai lançar-se no abismo agnóstico de Hume, para continuar depois entre as gargantas das categorias kantianas, da dialética hegeliana e marxista, do Espaço e Tempo bergsonianos, do Ser e do Nada sartreano, e assim até o infinito. Sim, porque não há esperança de libertação para essa águia indomável. A cada novo arranco no espaço, uma nova garganta a espera.
Berkeley é um momento curioso nessa cadeia de desesperos. Ainda bastante jovem, parece querer libertar a filosofia de suas terríveis contradições através de um golpe genial, mas temerário. O resultado foi o que já vimos acima: precipitou a águia às maiores alturas para lançá-la depois no mais pavoroso abismo. Tanto assim que Berkeley, depois de sua audácia juvenil, tornou-se um bispo anglicano, tipicamente prudente, e como diz maldosamente Bertrand Russel, “[...] trocou a filosofia pela água de alcatrão, a que atribuía maravilhosas propriedades medicinais”.
Em geral, ao tratar-se do sistema de Berkeley, costuma dizer-se que é a filosofia de um bispo. Mas a verdade é que o filósofo só se tornou Bispo de Cloyne em 1734, quando suas obras principais já estavam escritas há muito: Ensaio Sobre Uma Nova Teoria da Visão, em 1709; Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano, em 1710; Três Diálogos Entre Hilas e Filonous, em 1713; e mesmo Alcifron, já de segunda importância, em 1732. Somente Siris, onde a luz ardente de Berkeley treme nos últimos lampejos, aparecem em 1744, como produto eventual de seus ócios no bispado de Cloyne, ou de suas viagens constantes entre Londres e a sede da diocese. Toda a sua força Berkeley a gastou na temerária façanha da juventude. Mas a façanha bastou para inscrever o seu nome, de maneira definitiva, na história torturada do pensamento moderno.
Berkeley, tanto por seu extremado idealismo quanto pela sua audácia e mesmo pelo aspecto formal de sua obra, é uma espécie de remoinho platônico na correnteza do pensamento filosófico. Sua maneira de redigir tratados técnicos, como para o ensino escolar da doutrina, e diálogos em estilo poético, para a sua divulgação, mostra a legitimidade de sua linhagem platônica. Depois do curioso episódio de Plotino, seríamos tentados a dizer que Berkeley é um novo avatar do mestre da Academia, prolongando uma sucessão temporal e semelhante a do Buda através dos Lamas do Tibet.
Seja como for, a luz de Platão, embora atenuada pela distância, se renova na juventude do futuro Bispo de Cloyne. E somente assim, remontando-se ao sol ateniense que projeta sua luz através da escarpa da história, podemos compreender o papel desse jovem irlandês que proclama, entre as sombras da caverna do empirismo inglês, a realidade suprema e única do mundo das ideias.
Com Francis Bacon, a filosofia havia encontrado na Inglaterra de Jaime I o caminho perdido da Escola de Mileto. Voltava à física em busca do poder sobre o mundo sensível. Bacon repeliu a ciência demonstrativa de Aristóteles como estéril e responsável pela estagnação do conhecimento no mundo artificial da escolástica, e proclamou o valor renovador da indução como método fecundo da conquista do real. Ao velho Organum aristotélico opunha audaciosamente o seu Novum Organum Scientiarum. Thomas Hobbes desenvolve a tese de Bacon, procurando explicar de maneira definitiva que todo o processo do conhecimento depende da sensação. Como vemos, a filosofia continua a se debater na dualidade platônica do inteligível-sensível.
A linhagem empirista, que se inicia com Bacon, desenvolve-se com John Locke, filósofo em que o critério sensório atinge a mais acabada expressão. Locke afirma que o saber humano deriva da experiência imediata, cujos sinais vão sendo gravados na alma como os traços de escrita numa tábula rasa, ou numa página em branco. Esse objetivismo extremo vai resultar, entretanto, num extremo subjetivismo pelo processo de abstração de que se formará o conhecimento. Porque a mente reelabora os dados do sensível, joga indefinidamente com os sinais gravados pela sensação, e através da memória, dos processos associativos e comparativos, e por fim da generalização abstrata, constrói o seu próprio mundo. A mente é como um demiurgo platônico: encontrando a matéria do mundo, constrói com ela um novo universo.
Locke percebe o perigo e procura salvar-se através dos princípios racionalistas de substância e causa, formulando a teoria das causas primárias e secundárias: percebemos nos objetos as suas qualidades reais de grandeza, extensão, forma, movimento etc., mas as sensações nos dão outra série de percepções, que dependem da estrutura dos nossos órgãos sensoriais, e não dos objetos. São estas as qualidades secundárias, de ordem subjetiva; a cor, o sabor, o som, o odor etc. Voltamos assim à dualidade fatal em que se debate o pensamento filosófico.
É então que surge Berkeley. E formula a pergunta que precipita Locke no perigo de que ele tentara fugir. Esse dualismo de objetivo e subjetivo, de causa e efeito, de substância e predicado não contraria o próprio postulado fundamental do empirismo, enunciado por Locke em seu Essay, de que não conhecemos as coisas imediatamente, mas apenas pelas ideias que delas possuímos? Admitindo as qualidades primárias, Locke admitira um conhecimento direto do mundo exterior. O empirismo de Locke ficou abalado em seus fundamentos.
Se pudermos conhecer diretamente as coisas externas, então o nosso conhecimento não é consequente das ideias. E como podemos conciliar a contradição que resulta da comparação entre um conteúdo de consciência e uma realidade exterior? Berkeley se socorre de seus conhecimentos de ótica para mostrar que as qualidades primárias de Locke não oferecem nenhuma garantia de realidade. Pelo contrário, são tão variáveis quanto as secundárias. Basta vermos o problema da extensão. Não sabemos, por nossa experiência diária, que a extensão das coisas varia na proporção da distância em que a vemos? Assim, a própria extensão é uma qualidade subjetiva, uma ideia, e não uma realidade exterior. A solidez, a forma, o movimento, dependem todos da nossa percepção. São qualidades subjetivas.
A consequência dessas afirmações de Berkeley é a negação da matéria. A única realidade está na mente. Pois o próprio Locke não disse que só podemos conhecer através das ideias? Ora, se assim é, como falar de coisas que existem fora da mente? As ideias são a única realidade, pois constituem a nossa única forma de conhecer. Berkeley se torna então mais realista que o rei, mais platônico do que Platão. Sustenta que não podemos deduzir das ideias a existência de coisas exteriores.
Dessa maneira Berkeley parece cair novamente na situação de isolacionismo em que Descartes se encontrara dentro do cogito. E o curioso é que a única saída possível vai ser exatamente a de Descartes. Para não ficar prisioneiro de si mesmo, vivendo isolado no mundo das próprias ideias, Berkeley vai ter de apelar para Deus. É nesse momento que ele atira a filosofia à mais alta garganta da história, e se liberta do isolamento, fazendo-a prisioneira de uma espantosa dualidade subjetiva: a mente divina e a mente humana, em silencioso colóquio na eternidade.
EXISTIR É SER PERCEBIDO
Analisando o conteúdo do conhecimento, vemos que ele é apenas um conhecimento do conteúdo da consciência. Nossa experiência, pois, não é das coisas exteriores, mas das ideias. Disso resulta uma consequência importante: a existência das ideias é a sua própria percepção, ou aquilo que Berkeley chama o ser percebido. De tal maneira que “Toda a abóbada celeste e tudo quanto a Terra contém, numa palavra, todas as coisas que compõem a gigantesca estrutura do mundo, tudo isso não tem subsistência, sem uma consciência cognoscente: seu Ser (esse) é ser percebido ou conhecido”.
Berkeley antecipa, assim, em face ao empirismo de Locke, a atitude de Marx em referência à dialética de Hegel. Inverte os termos da gnosiologia de Locke, como Marx inverteu os da dialética. Mas também com relação ao episódio marxista, a atitude de Berkeley é inversa. Marx dizia ter posto em pé a dialética hegeliana, quando na verdade a virou de cabeça para baixo, mergulhando-a na matéria. O filósofo irlandês, sim, virou de cabeça para cima a doutrina de Locke, levantando-a do chão para erguê-la até as nuvens, ou ainda além.
Por outro aspecto de sua doutrina, Berkeley é para Locke o que Espinosa é para Descartes. Tomou em suas mãos as duas substâncias cartesianas de Locke e transformou-as na substância única espinosiana, dando-lhe também duas espécies de atributos, como logo mais veremos. Tenhamos cuidado, porém, nestes paralelos, que servem para nos orientar, mas não devem ir muito além disso. Há profundas diferenças entre a substância espinosiana e a berkeleyana.
Para Locke, as sensações provindas da matéria eram a essência do pensamento, e a matéria, por isso mesmo, a força exterior que agia sobre o espírito, dando-lhe os elementos do conhecimento através da experiência. Daí o empirismo. Para Berkeley, tudo se passa ao contrário: se o conhecimento vem da sensação, como de fato vem, não é a matéria que o produz, mas o espírito, pois só ele é capaz de perceber. Assim, o espírito não só produz o conhecimento, como produz a própria matéria. Pois, como vimos, existir é ser percebido.
Essa negação absoluta da matéria coloca o problema da existência ou não do mundo exterior em Berkeley. A impressão que se tem é a de que o filósofo não admite o mundo, só admite a mente. Esta mente percebe, e assim cria a existência. Mas percebe o que, se nada existe além dela ou fora dela? É a impressão que deixam, ainda hoje, vários resumos da doutrina de Berkeley. E é por isso que, durante muito tempo, o filósofo foi considerado como simples curiosidade filosófica, autor de um sistema artificial e engenhoso, sem maiores consequências na história do pensamento. De tal maneira que a descoberta de Berkeley, da coerência e da importância da sua doutrina, é fato recente na história filosófica. Foi muito fácil explicar-se a atitude berkeleyana como consequência de sua posição eclesiástica. Mas com essa facilidade furtou-se ao pensamento um dos capítulos mais emocionantes da sua história, que felizmente está sendo restabelecido em toda a sua grandeza.
A verdade é que Berkeley, negando a matéria, não nega a existência do mundo exterior. E o que é mais curioso, como, aliás, já entrevimos acima, não nega nem mesmo a extensão. Embora, para ele, como para Espinosa, a substância extensa subsista no seu pensamento, como subsistiu no espinosismo em forma de atributo. O que ele não admite, e com isso se coloca admiravelmente no centro do pensamento moderno, é a dualidade, ou mais precisamente, o dualismo. Seu pensamento é o avanço para o monismo, e num processo indiscutivelmente coerente. Acentua muito bem González Vicén: "[...] seu pensamento é ummomento essencial da dialética do espírito europeu, numa de suas direções especificamente modernas”.
Para que isso possa se tomar claro, temos de colocar primeiro o problema fundamental do empirismo. Se o conhecimento é de origem empírica, vem da experiência, através das sensações — admitida essa tese, que é a de Locke —, então é indispensável saber o que é que percebemos. Para Locke, esse problema foi resolvido simplesmente com a aceitação da substância extensa, da existência de coisas fora da mente, mas de natureza diferente e oposta à da mente. Locke aceitou, assim, o postulado baconiano da realidade objetiva. E justificou-o com os próprios resultados da experiência, afirmando que, se podemos operar sobre as coisas exteriores com base em nossas percepções, obtendo os resultados previstos em nossos cálculos, como acontece na vida prática e na pesquisa científica, isso prova que podemos captar o real e a sua própria forma de ser.
Berkeley não aceita essa solução simplista. Na verdade, Bacon e Locke não construíram sobre o terreno sólido da filosofia, mas sobre a areia movediça da opinião comum. Essa aceitação do mundo exterior com fundamento na prática é a do homem vulgar, é a de toda gente, mas não a do filósofo. Este deve perguntar como pode haver o trânsito do objetivo para o subjetivo. Como se pode sincronizar, por assim dizer, coisas heterogêneas como a matéria e o pensamento.
Berkeley entende que isso é impossível, pois, segundo afirma: "[...] uma ideia só pode ser semelhante a outra ideia, da mesma maneira por que uma cor ou uma forma só podem ser semelhantes a outra cor e outra forma". A confusão de Bacon e de Locke provém, pois, de um erro, que é a teoria da abstração. As chamadas "ideias abstratas", que seriam imagens gerais das coisas que afetam nossos sentidos e seu uso na linguagem, são a fonte do engano que levou os empiristas a formularem a tese contraditória da existência do mundo material e, portanto, da própria matéria.
A verdade é que não percebemos ideias de objetos, mas sensações isoladas, que unificamos na mente porque a experiência nos mostra que elas estão sempre juntas, e a esses conjuntos damos então certos nomes. A um conjunto de sensações que habitualmente recebemos denominamos maçã ou laranja, e a outro conjunto denominamos pedra, e a outro denominamos árvore. Mas nada nos autoriza a afirmar que existem essas coisas numa realidade exterior, como objetos de natureza diversa da percepção ou do nosso conteúdo mental.
“É, com efeito, uma opinião estranhamente dominante entre os homens [...]” – diz Berkeley, no seu Tratado do Conhecimento — “[...] a de que casas, montanhas, rios, numa palavra, todos os objetos sensíveis, possuem uma existência natural ou real, distinta do seu ser percebido pelo entendimento”. E acrescenta: “Se examinarmos com atenção esta crença, talvez cheguemos à conclusão de que, no fundo, sua origem está na doutrina das ideias abstratas. Pode, com efeito, chegar à abstração a alguma sutileza maior, do que a de distinguir a existência dos objetos sensíveis do seu ser percebido, concebendo-a como existente fora da percepção?”
Compreendemos assim que Berkeley não estava simplesmente jogando com palavras, inventando uma doutrina fantasiosa, engendrando um sistema engenhoso, mas realmente procurando a solução de um problema fundamental do conhecimento. E quando entendemos bem a sua posição, admiramo-nos da facilidade com que tantos opositores, e tantos críticos do empirismo, ainda hoje, não vacilam em dizer que Berkeley defendia apenas a sua religião e a sua posição eclesiástica. Os leitores encontrarão essa perfídia a todo momento. Mas a obra de Berkeley é o maior desmentido a essas aleivosias. Seu sistema é uma construção teórica de impressionante coerência, marcando de fato um dos momentos fundamentais do desenvolvimento do pensamento europeu.
O "erro geral" — como o chama Berkeley — das generalizações abstratas levou os homens ao "erro geral" da concepção da matéria como substância. Ressaltamos novamente o platonismo de Berkeley; os homens estão, em face de sua percepção das sensações, como os escravos da caverna diante das sombras projetadas na parede. Confundem as silhuetas com a realidade. Vejamos um argumento curioso. O que é a extensão? Não é uma ideia? Então, como pode existir fora da mente numa substância inerte?
Assim também é muito fácil dizermos que há uma ideia geral de mesa, que constitui uma abstração das sensações que as mesas objetivas nos dão. Mas quem nos assegura que existem essas mesas objetivas, uma vez que a nossa única via de conhecimento são as próprias ideias? A única coisa que podemos afirmar, coerentemente, é que existem feixes de sensações que percebemos com a forma de mesas. E se, na prática, lidamos com esses feixes como se lidássemos com mesas, isso não prova nada a favor da objetividade das mesas. Da mesma maneira por que o fato de os escravos da caverna lidarem com as sombras, como se elas fossem reais, não prova a realidade das sombras, mas apenas o engano dos escravos.
Berkeley analisa com aguda penetração essa posição enganosa: "Enquanto dispendemos os maiores esforços para conceber a existência de coisas exteriores, o que fazemos, durante todo o tempo, é contemplar as nossas próprias ideias". A mente se ilude a si própria quando supõe que pode conceber coisas que existam "[...] sem serem pensadas, ou sem a mente". É verdade que percebemos continuamente uma sucessão de coisas, um mundo de sensações. Há de haver, portanto, uma causa desse fato.
Berkeley não pode fugir do dilema de causa e efeito, ou de substância e causa. Mas uma vez que a substância não é a matéria, e uma vez que não pode ser de natureza estranha ou contrária à natureza da mente, então se tora claro que só há uma solução: a causa das ideias é uma substância ativa incorpórea, ou espírito.
A LINGUAGEM DE DEUS
Chegado a esse momento decisivo da sua perquirição, Berkeley realmente parece passar do plano da filosofia para o da mística. Mas os que o julgaram dessa maneira precipitaram-se lamentavelmente. Porque é agora, mais do que nunca, que ele vai provar o seu extraordinário vigor filosófico, a sua capacidade de andar nas bordas do abismo sem mergulhar nas suas profundidades insondáveis.
Gonzague Truc entende que a filosofia, condenada a jamais solucionar os seus problemas, só pode levá-los à solução de uma instância final e superior, que é a mística. Mas Berkeley não pensou assim. Apesar de tudo o que disseram dele, enganados por uma posição religiosa, o filósofo irlandês procurou solucionar filosoficamente os problemas da filosofia.
Estabelecido que a causa das ideias é uma substância ativa incorpórea, ou espírito, Berkeley assinala que existem duas categorias de ideias. Separa-as em dois gêneros, como Locke fez com as qualidades. Na primeira série estão as ideias provenientes da sensação, que são mais nítidas, fortes, bem ordenadas e duráveis; na segunda, as que provêm da reflexão ou memória. As condições diferentes dessas duas categorias são suficientes para revelar-lhes a origem, e de certa maneira confirmarem a tese berkeleyana. As ideias da primeira categoria são mais fortes e duráveis porque provêm da substância espiritual exterior, da mente incorpórea que as transmite ao homem, e que só pode ser o Espírito Supremo ou Deus.
Mas não é a teologia nem a mística que resolve este problema, e sim a filosofia. Porque a teologia envereda pelos caminhos da revelação, apoiada no dogma, e a mística se entrega à iluminação da fé. Mas Berkeley não chega à sua solução por nenhum desses caminhos. Ele a atinge através da razão, pelo trabalho árduo da reflexão filosófica. Assim como Descartes encontrou a Deus no cogito, de maneira filosófica, e não teológica ou mística, assim Berkeley encontra Deus na sensação. Isto pode provar, ou pelo menos sugerir, que por qualquer das nossas vias de percepção podemos chegar a Deus: quer mergulhando em nós mesmos, como Descartes, quer mergulhando no mundo sensório, como Berkeley.
Estamos, pois, diante de um universo duplo, como o de Locke, constituído por um mundo interior e outro exterior, mas por uma substância única, a espiritual, que liga na sua homogeneidade indissolúvel as duas categorias de ideias. Nosso universo berkeleyano é inteiramente mental: de um lado, temos a nossa mente, com as suas ideias fracas e instáveis; de outro, a mente divina, com suas poderosas ideias, tão fortes e estáveis que chegamos a criar a seu respeito a ilusão de uma substância estranha e material.
Deus pensa, e o mundo existe. Nós percebemos o mundo, as suas ideias, e as repensamos em nossa mente. Mas nada disso é fictício. O mundo mental não é menos real que o material. Pelo contrário, é infinitamente mais real, pois é o verdadeiro mundo. As leis naturais, descobertas pela ciência, não precisam ser revogadas. Elas existem. São as leis da ordem ideal na qual Deus nos apresenta as suas ideias. Só precisamos aprofundar o assunto para dar a essas leis o seu verdadeiro sentido, reconhecer-lhe a natureza espiritual.
Assim estabelecida a unidade espiritual do cosmos, Berkeley vai agora estabelecer o mais extraordinário diálogo que se possa imaginar. Ibn Khaldun dizia que Deus ouve as nossas palavras e os nossos silêncios. Berkeley mostrará que Deus nos fala pelo silêncio das coisas. Nesse mundo espiritual sem sombras, de que a filosofia baniu as silhuetas ilusórias da caverna platônica, Deus, a mente suprema, usa uma linguagem de signos para falar à mente dos homens. Nossos órgãos sensórios são como receptores telegráficos, cuja função é captar os sinais da misteriosa linguagem.
Berkeley estuda minuciosamente o assunto em seu Ensaio Para Uma Nova Teoria da Visão, e volta a desenvolvê-lo no Tratado. Então nos oferece esta mecânica divina da transmissão dos signos, que vale ao mesmo tempo por um primor de raciocínio e um salmo à grandeza de Deus:
As ideias de visão e de tato constituem duas espécies completamente distintas e heterogêneas. As primeiras são signos e prognósticos das segundas. As ideias de visão são a linguagem pela qual o Espírito, regente supremo, do qual dependemos, nos informa das ideias de fato, que imprimirá em nós, caso provoquemos este ou aquele movimento em nossos corpos.
A distinção entre as ideias de visão e tato levam Berkeley a propor a revisão do conceito de geometria como ciência abstrata. Pelo contrário, trata-se de uma ciência baseada em realidades concretas, entendendo-se sempre o concreto como realidade espiritual. Isso se prova quando examinamos o problema da distância, pois vemos então que a extensão revelada pela visão é variável e imprecisa, diferindo segundo as circunstâncias, as disposições orgânicas e outros fatores. Somente a extensão revelada pelo tato é permanente e comporta medidas fixas.
Assim, os objetos visíveis se apresentam a nós com duas dimensões ou magnitudes diferentes, com duas espécies de extensão: a visual e a tátil. Essa aparência nos é sugerida "[...] por certas ideias visíveis e certas sensações que acompanham a visão, as quais, entretanto, em sua própria natureza, não têm nenhuma espécie de semelhança ou relação com distância ou com as coisas situadas à distância". Verificado isso, Berkeley conclui: "Só uma conexão ensinada pela experiência faz que aquelas ideias e sensações signifiquem para nós e nos sugiram a distância e as coisas situadas a distância, da mesma maneira por que as palavras de cada idioma nos sugerem as ideias que elas representam".
Malebranche havia estabelecido a doutrina da participação da nossa mente nas ideias de Deus. Berkeley aceita a tese, mas lhe dá uma forma diferente. Transforma a "visão em Deus", de Malebranche, na própria "existência em Deus", do apóstolo Paulo. Podemos dizer que Berkeley volta diretamente a Platão, suprimindo a fase intermediária do pensamento agostiniano, que serve de fundamento a Malebranche. E afasta também de sua doutrina o artifício das causas ocasionais, pelo qual é Deus que se insere em nós para que possamos nos mover. Berkeley escapa ao misticismo de Malebranche para repensar o problema das relações entre Deus e o homem em termos filosóficos, dentro do mais estrito rigor lógico.
Graças a essa posição, Berkeley pode tratar do mundo exterior como realmente exterior. Alguns autores veem nisso uma contradição e condenam o filósofo por crimes que ele não cometeu. Padovani, por exemplo, entende que "[...] por motivos práticos, morais e religiosos, ele conserva no seu empirismo os conceitos de substância, causa e espírito, isto é, os conceitos de substância e causa espiritual". A essa crítica do Padre Padovani opõe-se a do materialista Posner, que acusa Berkeley de incoerente por não ter reconhecido "[...] como única realidade do mundo, o indivíduo que discorre sobre ele". Como vemos, partindo de posições opostas, Padovani e Posner acusam Berkeley porque ele não caiu na tautologia, nem no solipsismo. Berkeley entende que toda a realidade é do espírito, mas não do seu espírito; entende que não há causa diferente do efeito, o que é rigorosamente lógico, mas não funda o efeito no próprio efeito, o que seria absurdo.
Vejamos como ele mesmo responde a essas críticas: “Quando digo que os corpos não têm existência fora da mente, seria entender-me mal, se cressem que me refiro a esta ou aquela mente singular, sendo que na verdade me refiro a toda mente, qualquer que ela seja”.
Em suas respostas às objeções de seus contemporâneos, Berkeley insiste no esclarecimento de que o seu sistema não implica a derrogação das conquistas da ciência materialista ou uma tentativa de perturbá-la. Bastaria a essa ciência renunciar à matéria, substituindo para o seu próprio bem para maior clareza de seus conceitos e maior eficiência de suas pesquisas, essa noção errônea por outra, como a de espírito ou mesmo a de ideia tátil. Neste ponto, Berkeley antecipou as mais recentes concepções da física moderna, que transformam o nosso universo material num universo energético. Compton, físico-nuclear, chega mesmo a supor que as descobertas contemporâneas nos levam a perceber alguma coisa por trás da energia, e que essa coisa se assemelha muito ao pensamento.
O que poderia parecer contraditório em Berkeley é a sua afirmação de que a extensão não existe fora da mente e que esta é inextensa. Mas Berkeley sustenta que a extensão e uma ideia. Ora, as ideias são próprias da mente.
Consequentemente, explica-se a existência da extensão no inextenso. Isto se assemelha um pouco à solução dada pelos ocasionalistas ao problema da existência de matéria em Deus: o que nele existiria não seria mais do que o princípio imaterial da matéria.
Mas Berkeley não cai na mesma posição, pois afirma a existência da extensão como realidade ideal, e não apenas como princípio ideal de uma realidade estranha: "As ideias impressas nos sentidos [...]” – diz ele – “[...] são coisas reais, ou que realmente existem". E vai mais longe, lembrando que nossas noções atuais de matéria e extensão decorrem de um vício de interpretação da realidade. Por causa desse mesmo vício, consideramos abstrato o mundo ideal, que na realidade é o próprio mundo em que vivemos.
O ABISMO DE HUME
Berkeley entende ainda que a concepção "viciada" de matéria como substância extensa é a responsável pelo ceticismo. A suposição, diz ele, de que existem coisas exteriores, no sentido de oposição às do pensamento, tem dado motivo aos argumentos do ceticismo. Sua explicação é clara:
Enquanto atribuirmos existência real a coisas não pensantes, distintas do seu ser percebido, não somente nos será impossível conhecer com evidência a natureza de algum ser real não pensante, senão até mesmo saber se ele existe.
Vem daí encontrarmos filósofos que desconfiam dos seus sentidos e duvidam da existência do céu e da Terra, de tudo o que veem e sentem, inclusive dos seus próprios corpos. E depois de todo o seu trabalho e de todos os seus esforços mentais, veem-se forçados a confessar que não podemos chegar a nenhum conhecimento evidente ou provado da existência de coisas sensíveis.
Mas um terrível escocês, David Hume, apresentando-se como continuador do empirismo, vai demonstrar que também do absolutismo espiritualista berkeleyano podemos chegar ao ceticismo. E com isso, ele encerrará o episódio empirista. Encravará o carro de Bacon numa rua sem saída. E, como já dissemos atrás, lançará a águia desesperada da filosofia não mais numa garganta estreita, mas num profundo abismo. Dali, só o gênio de Kant a poderá retirar, para lançá-la de novo nos rumos angustiados do seu destino, entre os desfiladeiros do futuro.
Hume aplica à substância espiritual de Berkeley argumentos semelhantes aos que serviram ao irlandês para destruir a substância material de Locke. E mostra que a substância berkeleyana não é mais resistente que a outra. Além disso, ataca também o princípio de causalidade, que Berkeley deixara de pé, e de que até mesmo se servira.
Para Hume, não existe substância, mas apenas séries de ideias simples, que chamamos por essa vazia denominação. Os pensamentos nada mais são do que agregados de ideias simples, e estas, por sua vez, cópias ou reflexos vagos das sensações.
O que são as ideias simples, ele as explica dizendo que partem das impressões simples, diretas, das coisas. As ideias complexas são misturas de impressões simples. Tudo depende das impressões, pois basta ver que um cego de nascença não tem ideia de cores. O que sabemos, portanto, vem exclusivamente da experiência, e é desta também que deduzimos, por força do hábito, a chamada lei de causalidade. Vemos as coisas se sucederem e entendemos que umas procedem das outras, mas nada nos assegura que assim seja de fato.
No tocante à ideia do Eu, entende Hume que se trata de simples equívoco. Não havendo impressão do Eu, também não pode haver a sua ideia. O Eu não é nada além de um agregado de estados de consciência, de representações: um feixe de percepções. Os homens, portanto, são apenas "[...] feixes de percepções, as quais se sucedem umas às outras com inconcebível rapidez, mantendo-se num fluxo perpétuo".
Bertrand Russell entende que essa conclusão é importante por libertar a metafísica dos resíduos da noção de substância, e a teologia do conhecimento da alma, e por mostrar, na análise do conhecimento, que a categoria de sujeito e de objeto não importam.
Windelband lembra que Hume omitiu essa ideia sobre o Eu, enunciada no Tratado da Natureza Humana, ao reelaborar sua doutrina nos Ensaios, mas jamais se retratou dela.
O ceticismo de Hume abre assim um abismo a que a filosofia se lança, no momento mesmo em que a corrente empirista chega ao fim do seu desenvolvimento. Windelband entende que a melhor denominação para o sistema de Hume seria o de ceticismo empirista. Com isso se salvam os aspectos positivos de sua filosofia, que realmente constitui um grandioso sistema. Hume nega a possibilidade da metafísica, mas também põe em dúvida a possibilidade das ciências empíricas, preferindo o caminho de um probabilismo empírico para a continuidade da experiência científica. Nega a possibilidade de harmonia entre a razão e a fé. Nega a possibilidade de qualquer elaboração de uma religião científica. Admite, entretanto, que o mundo oferece a impressão de ser dirigido por uma inteligência suprema, e concede que nela se possa crer, mas apenas crer. Essa concessão pragmática será talvez o gérmen da religião prática de Kant, e muito mais tarde, dos princípios do pragmatismo americano sobre o mesmo problema.
É curioso vermos a maneira por que a filosofia inglesa, na era moderna, a partir do entusiasmo renovador de Bacon, se precipita no abismo negativista que se abre com Hume. Do alegre sensualismo do homem que subitamente descobrira a arma da experiência para dominar o mundo, proclamando que "saber é poder", vemo-la correr para o utilitarismo egoísta de Hobbes, deslizar para o materialismo contraditório de Locke, subir inesperadamente a rampa do sensualismo angélico de Berkeley e, então, como num balanço de trampolim, atirar-se ao torvelinho negativista de Hume.
Desse torvelinho, tanto mais perigoso pela profundidade do gênio que o produz, só um anjo a poderá salvar. Mas esse anjo não está na Inglaterra. Embora de descendência escocesa, encontra-se na Prússia, e é dali que virá.
Texto publicado originalmente no livro OS FILÓSOFOS, Ed. Paidéia.