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Causos

O MESTRE HERCULANO
Por Dora Incontri

Escrever sobre o mestre Herculano é para mim um dever e um deleite, pois o despertar de minhas pro­postas existenciais nesta vida se deu sob a sua influên­cia. Eu o admirava com fervor durante minha infância e adolescência, a ponto de ficar horas prestando aten­ção nas conversas que mantinha com a multidão de pessoas que frequentava sua casa, bebericando o café de D. Virgínia. Esta, sempre muito preocupada, queria me arranjar outras crianças para brincar, queria me dar alguma tarefa mais de acordo com minha idade… mas eu teimava em ficar na sala, embora fosse grande amiga da neta Regina, com quem costumava me en­treter.

Desde os 11, comecei a receber poemas psicogra­fados. Herculano os escutava, me estimulava e orien­tava. Aos 13 anos, já estava decidida a me tornar es­critora como ele. E ele me indicava livros, discutia po­etas de que gostávamos. Lembro-me de ele dizer o quanto apreciava Cecília Meirelles. Falávamos dos escritores russos – outra paixão – sobretudo Tolstoi, de quem ele tinha um retrato no escritório. Para fazer par, eu mandei enquadrar um de Dostoievski, que lhe dei de presente de aniversário. Atento à minha sede de aprender, o mestre me fazia dedicatórias esperançosas nos livros que me dava. Aos 14 anos, fez-me um fan­tástico poema, A Hora de Dora. Uma resposta a uma incipiente poesia que eu fizera em sua homenagem, cheia daquele ardente amor filial. Nele, Herculano procurava me trazer para a realidade presente, pois eu era muito fixada em recordações espontâneas de vidas passadas:

Lembranças da adolescência

Aos 15, inaugurei minha mediunidade de psicofo­nia, numa reunião mediúnica dirigida por ele. Como eu era novata, fez questão ele próprio de conversar com os três Espíritos que recebi logo na primeira vez. De­pois do terceiro, mandou que eu saísse da mesa, por­que já bastava para começo. Não me esqueço da do­çura firme com que falava com os Espíritos mais difí­ceis, nem da vibração de amor, com que suas palavras vinham carregadas.

A participação nas reuniões mediúnicas, dirigidas por Herculano, durou muito pouco. Logo em seguida, fui morar na Alemanha, com minha família, pela se­gunda vez. Então, em janeiro de 1979, meu irmão mais novo, Luis, ficou com hepatite em pleno inverno euro­peu. Apavorados com a possibilidade de os médicos alemães, como era de praxe, isolarem o menino num hospital de doenças infecto-contagiosas, viemos às pressas para o Brasil, para que ele fosse tratado em casa. Foi a oportunidade de nos despedirmos de Her­culano.

No início de março, no dia 4, fomos lhe fazer uma visita, meus pais, meu irmão, já curado, que Herculano chamava de Luigino, e eu. Ele estava com muita difi­culdade de enxergar, com uma catarata avançada. Nas dedicatórias que nos fez, os emes tinham muitas per­nas. A serenidade de sempre, o acolhimento de cos­tume mataram nossas saudades.

Na noite do dia 9 de março, meus pais haviam saído e eu fiquei sozinha, em meu quarto, na casa da minha avó. Senti uma inexplicável vontade de chorar. Não sabia por que a sensação de melancolia. Entendi no dia seguinte, quando de manhã, recebemos o telefo­nema com a notícia de que Herculano se fora na vés­pera.

A imagem que guardo dele, de seu rosto, de seus gestos, de seu olhar é a da figura paterna, benevolente, bem humorada. Ao mesmo tempo, lembro de sua ines­gotável erudição, de sua paciência em ensinar, de sua despretensão ao abordar os temas mais difíceis e trans­cendentes.

Tinha eu 16 anos, quando acabou essa relação na terra, mas iniciou-se a leitura aprofundada e a crescente identifi­cação com seu pensamento. Ao mesmo tempo, em Es­pírito, sua inspiração nunca me falta, seu olhar nunca se afasta.


Das mãos de Herculano, recebi a compreensão da genialidade de Kardec e a veneração pelo mestre; re­cebi também o ideal da Pedagogia Espírita. Seguindo seus passos, fui estudar jornalismo e adotei a filosofia como objeto permanente de estudo. Obedeço ao seu conselho, em uma dedicatória que me fez, tentando “viver a poesia em ritmo existencial” e procuro dar minha contribuição para “aclarar os nevoeiros do mundo”. E ainda me integrando “no tempo de Dora”, ajustada ao tempo de agora, para melhor atuar no presente.

Esse testemunho pessoal parece-me re­levante para o entendimento do pensador. É que existe uma coerência vital entre o homem e a obra. Não havia contradição entre o que escrevia, o que falava, o que fazia e a vibração que irradiava. Herculano era um homem reto, bom, generoso, sobretudo sincero. Nele não havia dissimulações, meias palavras, mas pesso­almente não havia também agressividade. A exaltação que revelava às vezes nos escritos era indignação justa, era ardor na batalha das ideias. Não era ódio, violência ou qualquer sentimento antagônico que fosse – porque não havia nada disso em Herculano. Era essencial­mente sereno. Mas como ele mesmo explicou em sua obra O Ser e a Serenidade, a serenidade existencial não exclui a defesa viril de uma ideia ou a luta enga­jada por uma causa.

Lembro-me certa vez de uma conversa em família. D. Virgínia, como defensora natural do marido, refe­ria-se a certa liderança do movimento espírita de São Paulo que (como outras tantas) havia traído a confi­ança de Herculano e que, de amigo, passara a adversá­rio… Herculano, então, com palavras mansas, relatou um encontro que tivera com essa pessoa na rua e como lhe estendera a mão, como se compadecera de seu es­tado físico aparentemente doentio. Mas não dizia isso com nenhum laivo de pretensão à santidade, nenhum exibicionismo de parecer superior. Era fraternidade autêntica, era benevolência pura.

Era evidente que lutava por ideias, apaixonada­mente, mas não se deixava atingir por nenhum ressen­timento ou revolta contra as pessoas que pensavam diferentemente dele.

Jamais vi Herculano alterar a voz. Mas nunca senti algo de excessivamente açucarado, que pudesse ensejar qualquer desconfiança quanto à sinceridade absoluta do que dizia. Se tivesse que caracterizá-lo com poucas palavras, escolheria estas três: coerência, serenidade e benevolência.
 

O reencontro na maturidade


Apenas mais tarde, porém, pude compreender a pujança intelectual de Herculano Pires. Quando me aprofundei em suas obras e nas de Kardec é que pude aquilatar a contribuição única que Herculano dera ao desenvolvimento do espiritismo.

A primeira dessas contribuições está na própria compreensão da ideia espírita. Tratando-se de uma re­volução conceitual, uma quebra de paradigma, um passo inédito na história do conhecimento – a sua di­mensão e o impacto renovador de suas propostas ainda não foram entendidos pelos seus adeptos mesmos, que o tocam apenas superficialmente, carregados dos vícios religiosos do passado, incapazes de singrarem nos ma­res abertos, descortinados por Kardec. A maioria dos espíritas no Brasil aceita o espiri­tismo como mais uma religião apenas, embora mante­nham o discurso do tríplice aspecto. Herculano soube sondar as profundidades da obra de Kardec, enten­dendo-a como uma revolução cultural, como uma pro­posta pedagógica, como ciência nova, como filosofia inédita, sem negar seu aspecto religioso.

Muitos espíritas – ouvia eu desde pequena mur­múrios neste sentido – o consideravam fanático por Kardec, mas Herculano não tinha nenhum laivo de fa­natismo, era aliás uma pessoa avessa às idolatrias. O caso é que ele entendeu como ninguém o papel de Kardec no espiritismo. Ainda hoje, a maioria dos espí­ritas tem a ideia equivocada de que Kardec teria apenas organizado (por isso a ênfase na palavra codificador) uma revelação pronta, dada pelos Espíritos. Entretanto, apesar de ter havido sim uma revelação, a estruturação da filosofia espírita e a criação de uma metodologia de abordagem científica foram do homem Kardec. Her­culano colocou em relevo esta contribuição de mestre.

Fez isso, não de maneira histórica, inserindo-o no seu contexto, mas na contemporaneidade, com que tra­vou permanente diálogo. Como jornalista-filósofo, Herculano esteve sempre ligado à realidade, ao turbi­lhão de ideias do seu tempo e procurou mostrar a co­nexão do pensamento espírita com o processo evolu­tivo da filosofia, das pesquisas e da história humana. Temos assim não um mero divulgador de ideias espí­ritas do século XIX, mas um pensador que pensou es­piritamente o século XX.

Essa é a função de todo conhecimento vivo. O es­piritismo não pode se tornar letra morta, bíblica, que adotamos de forma postiça, como um credo fechado. É uma nova maneira de ver, pensar e sentir o mundo e assim pode iluminar o progresso do pensamento hu­mano, interagindo com as ciências, as filosofias, as correntes pedagógicas.

Isso, porém, não é ecletismo. Certa vez, muitos anos atrás, ainda no início da minha jornada intelec­tual, travei conhecimento em Portugal com uma pessoa formada em Filosofia e ela me dizia indignada que Herculano era eclético. Como se sabe, tal adjetivo é altamente pejorativo no meio acadêmico, porque signi­fica colocar diferentes elementos, díspares, numa pro­posta de pensamento ­– o que revelaria superficiali­dade e falta de conhecimento aprofundado das nuanças das diversas correntes. Uma salada mista, em suma. Essa crítica na época me irritou sobremaneira, mas foi ex­celente desafio, porque mergulhei com mais afinco do pensamento de Herculano, para desmentir a acusa­ção. Nunca mais encontrei essa pessoa, mas depois de mais de 20 anos de estudo das obras de Herculano e tendo percorrido os bancos acadêmicos da graduação ao pós-doutorado, posso afirmar com toda certeza que não há o mínimo ecletismo em Herculano.

O filósofo de Avaré nunca perde a identidade do pensamento espírita, mas compreende que faz parte dessa identidade o enxergar os elos com outras formas de pensamento e entender a história das ideias huma­nas como uma construção coletiva de conhecimento e descoberta da verdade. Assim, dialogar e integrar evita o dogmatismo e a estagnação, mas o eixo da racionali­dade metodológica, proposta por Kardec, é o que dá sentido e nos faz ver as possíveis conexões.

Podemos portanto dizer que o pensamento de Herculano Pires é amplo e aberto e por isso mesmo fiel aos princípios lançados por Kardec. Foi essa leitura estimulante que me levou ao tra­balho que tenho procurado realizar de encarar o espiri­tismo como proposta cultural abrangente, estabele­cendo um diálogo com o conhecimento acadêmico, para que ele não se feche nos guetos dos centros espí­ritas, apenas como forma de manifestação religiosa, e ainda muito carregada de misticismo.
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Texto publicado originalmente no blog da autora.

PRAZER EM CONHECER HERCULANO PIRES
Por Rita Foelker

As ideias e livros de Herculano Pires influenciaram fortemente minha vida e atividade espíritas. É algo de que não me esqueço e que, às vezes, menciono em conversas, mas até hoje não havia escrito a respeito. Bem, chegou o momento.

Eu conheci o escritor, professor, filósofo e jornalista J. Herculano Pires (1914-1979) através de um de seus livros que, na minha vida, foi decisivo para meu modo de pensar o Espiritismo. O livro é O espírito e o tempo: introdução antropológica ao espiritismo (Ed. Paidéia). Mas Herculano fez mais: despertou meu vivo interesse pelos estudos espíritas, que nunca mais cessou. Isso foi lá pelos anos 1980.

Devo dizer que já havia lido as Obras Básicas de Kardec na adolescência, além de vários livros de André Luiz. Kardec me impressionou muito, pela simplicidade e racionalidade. Mas Nosso Lar, à época, me pareceu bastante inverossímil. Eu o li, ora como um relato, ora como uma obra de ficção, sem saber ao certo o que pensar a respeito. Hoje sei que me faltava uma ponte de conhecimentos, raciocínios e vivências que somente chegariam com o tempo, o estudo e a maturidade, para compreender as leis que explicam as informações trazidas por André Luiz, esse competente repórter do Além.

Tem quem ache Herculano muito radical em certos posicionamentos doutrinários. Eu, pelo contrário, considero-o bastante criterioso.

Outro dia, eu buscava frases de livros para postar nas fanpages da Fundação Maria Virgínia e J. Herculano Pires e da Editora Paidéia. Isso faz parte do meu trabalho lá, como editora de conteúdo. Então me deparei com o seguinte trecho do livro O mistério do ser ante a dor e a morte: “A Doutrina Espírita tem a sua terminologia própria, específica, que não pode ser alterada ou atualizada, como pretendem alguns novidadeiros.”

Noto aqui uma opinião equilibrada, não radical. Para mim, ele age como um estudioso que admira e respeita a doutrina que estuda. Que não permite que conceitos de outras doutrinas, de outras procedências, venham atropelar sua leitura, reflexão e compreensão da ideia que Kardec deseja transmitir. Herculano também age aqui como um filósofo pois, em Filosofia, é fundamental compreender o que uma palavra significa dentro do contexto de uma obra ou dentro do pensamento de determinado filósofo. ‘Espírito’, por exemplo, um termo tão comum, possui dois sentidos próprios, dentro do espiritismo. Você sabe quais são? Dica: O livro dos espíritos, questões 23 e 76.
 
RITA FOELKER é escritora, palestrante, jornalista e editora de conteúdo da Fundação Maria Virgínia e José Herculano Pires.
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Crônica publicada originalmente no Jornal IEE, do Instituto Espírita de Educação, Ano IV, nº 47, Jan/Fev 2017.

O AMIGO DO ESPIRITISMO

Por Alvaro Basile Portughesi

Por volta do ano de 1965, eu caminhava pela Rua Maria Paula, defronte à Federação Espírita do Estado de São Paulo e o prédio era térreo. O que me chamou a atenção foi o anúncio que havia na fachada da Casa Espírita: “Palestrante de Hoje, Professor José Herculano Pires”.

Não conhecia pessoalmente o conferencista, mas sabia que se tratava de uma figura bem conceituada e de relevo nos meios doutrinários. Entrei no salão que se encontrava lotado, porém, tive a sorte de encontrar um lugar vago na primeira fileira e lá fiquei à espera do orador. Os senhores diretores responsáveis pela Casa, estavam devidamente acomodados onde seria a retaguarda do orador. O apresentador, assumindo ar solene, fez as honras da Casa, enumerando as qualificações do ilustre conferencista.

- Hoje para gáudio de todos os presentes, teremos José Herculano Pires, cuja palavra possui livre acesso às mais famosas Universidades; crítico literário dos Diários Associados... Jornalista... Escritor... Tradutor...Filósofo...

O palestrante, então, assumiu o microfone:

-Vamos esquecer os títulos honoríficos, pois o título do qual me orgulho é o de Amigo do Espiritismo!

A plateia irrompeu em aplausos. O palestrante prosseguiu e afirmou, para surpresa de todos e desagrado da Diretoria postada com realce:

- Estamos na Federação Espírita do Estado de São Paulo, entidade que, pelas suas distorções doutrinárias, não diz a última palavra sobre o que é Espiritismo!

ALVARO BASILE PORTUGUESI é escritor.
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Crônica inédita. Na foto, Jamil Bizin, colaborador da Fundação MV&JHP, ao lado do autor da crônica.

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