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PLATÃO E ARISTÓTELES

(427 a.C. — 347 a.C.)     /     (384 a.C. — 322 a.C.)

 

Platão é o primogênito de Sócrates, o seu herdeiro direto. Recebeu em mãos toda a fortuna do pai e cultivou-a para o futuro. Mas teve também o seu primogênito, Aristóteles, a quem transferiu o patrimônio herdado e imensamente ampliado. Há, pois, uma dinastia socrática no vasto império da filosofia grega, que é, em última análise, o Império da Filosofia.

Platão foi acusado de desvirtuar a doutrina de Sócrates, de transformar o seu mestre em personagem de seus diálogos e porta-voz de suas próprias ideias. Aristóteles, por sua vez, é acusado de rebelião contra o pensamento platônico. Até que ponto essas dissensões na família socrática são reais e podem ser levadas a sério?

Sócrates descobriu o conceito e proclamou a sua importância para a vida humana. O conceito é a ideia-geral, a representação sintética do particular, mas por isso mesmo traz em si a chave de todos os segredos, de todas as dificuldades que encontramos no particular. Sócrates serviu-se do geral para devolver o pensamento ao particular, tirá-lo da especulação abstrata das causas-primárias e dirigi-lo com firmeza às secundárias.

Foi assim que criou a moral. Mas a moral socrática se funda na metafísica do conceito, e é justo que seu discípulo Platão, ao herdar a primeira, herdasse também a última. O que vamos ver em Platão é justamente um aprofundamento da metafísica do conceito. Não há nisso nenhum desvirtuamento, mas tão somente uma continuação do trabalho socrático.

Aristóteles criticou a teoria das ideias de Platão, voltou-se contra o mestre e parece ter querido construir uma filosofia própria, inteiramente autônoma. Isso, na aparência. Na realidade, Aristóteles descobriu, por trás do conceito, a ussia, ou seja: a substância. O conceito socrático, em que Platão descobrira a realidade ideal, parece a Aristóteles simplesmente a máscara que oculta o rosto de um personagem da grande tragédia. Por trás da máscara é que está a realidade. Assim, a revolta de Aristóteles não é mais do que o desenvolvimento da herança platônica.

Na trindade socrática da filosofia grega há portanto um pai um falho e um Espírito Santo. O pai é o dispensador da verdade, o doador da vida: Sócrates, que revelou o conceito. O filho é o verbo — e que poderoso verbo! -, o pregador da verdade e transmissor da vida: Platão. O Espírito Santo é o esclarecedor das consciências, o iluminador dos espíritos, o Consolador, do Evangelho de João, que vem completar a obra da revelação.                    

No plano das aparências, no mundo das sombras em que vivemos, essas três figuras podem parecer-nos antagônicas. Mas quando aprofundamos o olhar além das sombras da caverna e o acostumamos à luz do Sol, somos capazes de ver as conexões ocultas.                        

 

PLATÃO E A REALIDADE

Sócrates quer mostrar a Glauco a triste condição do homem na vida terrena, e propõe-lhe, no livro sétimo da República, o mito da caverna. Este mito é uma síntese alegórica de toda a doutrina de Platão. Enfileiram-se os homens no fundo de uma caverna acorrentados de tal maneira, desde a infância, que não podem voltar-se para trás. Estão de face para o fundo em cuja parede se projetam as sombras do que se passa lá fora. O Sol é o grande projetor, o fogo misterioso que gera o movimento das sombras. Mas se um dia um desses escravos se libertar, poderá voltar-se, andar e encarar a luz que entra pela boca desconhecida da caverna e descobrir a realidade.

Não obstante, há um preço que o liberto terá de pagar pela sua liberdade. A princípio, será deslumbrado pela luz e verá as coisas com tamanha dificuldade que continuará atribuindo realidade às sombras da parede. Desviará os olhos do Sol e perceberá que as sombras são mais nítidas. Saindo para fora, e começando a subir o "caminho escarpado" que se eleva ante a boca da caverna em direção ao Sol, sofreria ainda mais. Até que seus olhos se acostumassem com a luz, teria de desviá-los dos objetos reais para as suas sombras, projetadas no solo, ou para os seus reflexos na água. "Precisaria de tempo — diz Sócrates — para se adaptar à claridade da região superior".

Suponhamos agora que o escravo liberto já se habituou à luz e tornou-se capaz de encarar o próprio Sol. Então compreenderá a verdadeira natureza das sombras projetadas na parede da caverna. E se voltar para lá e disser aos companheiros o que viu e o que aprendeu, será acusado de haver sofrido perturbações visuais, por ter subido à região superior. E ainda mais: "[...] se alguém quisesse proporcionar-lhes a mesma liberdade, mereceria ser preso e morto". Mas o que viu a luz aprenderá a desdenhar as sombras, e acima de tudo compreenderá que não se pode dar a ciência aos outros como quem dá vista a um cego. "Não se trata de dar à alma a faculdade de ver, que ela já possui, mas de corrigir a direção dos seus órgãos visuais."

O mito é para a realidade "[…] algo assim como uma abreviatura", diz Julián Marías, ao tratar dos mitos de Platão. "O papel do mito — acentua — é manifestar-nos a realidade, ainda que de maneira imperfeita e parcial, para mostrar ao que ela se assemelha. O mito, longe de ser um substituto da definição, é superior a ela. O verdadeiro conhecimento, para Platão, se encontra no mito. Mas o mito platônico, que parte da definição, não é como o mito pré-filosófico". E vemos aqui, no mito da caverna, quanto são reais essas conclusões. Como uma abreviatura, uma síntese, este mito nos dá a visão geral da doutrina platônica.

A realidade, para Platão, está fora da caverna. Pertence ao mundo da luz, à estrada escarpada que as criaturas têm de subir em direção ao Bem Supremo, ou à ideia do Bem. A realidade, pois, é a Ideia. E a irrealidade está nas coisas, no mundo sensível. Sua concepção do mundo é assim dualista, existindo o sensível e o inteligível. O sensível não tem estabilidade, não tem segurança, pois flui continuamente como as águas de um rio ou as labaredas do fogo heraclitiano. Pode haver maior prova de irrealidade do que essa fluidez? Se os homens, em geral, pensam que o real está no sensível, é porque são escravos da matéria voltados para as sombras que se projetam no fundo da caverna. Vivemos na sombra, entre sombras inconsistentes, e nós mesmos nada mais somos do que sombras, mas trazemos em nós a lembrança oculta do mundo das ideias.

Além dessas sombras estão as ideias, que constituem o mundo verdadeiro, do qual procedemos. Estas sombras são reflexos das ideias. Para que haja reflexos, porém, é necessário haver primeiramente algo que as reflita. Dessa necessidade surge a natureza tríplice da concepção platônica do mundo: o Ser, o Não-Ser e o Devir. O Ser é o mundo das ideias, que se unifica na ideia do Bem, ideia suprema de que todas participam e para a qual todas evoluem. O Não-Ser é o espaço vazio, o espaço matemático em que as formas geométricas reproduzirão as ideias, como reflexos ondulantes na face de um espelho. O Devir é o mundo sensível, o mundo corpóreo, material, em que os reflexos se desenvolvem através de figuras sucessivas, que aparecem e desaparecem na fluidez da inconsistência.

Essas figuras são coisas e corpos que participam do mundo das ideias, pois refletem esse mundo e avançam para ele. As ideias são assim a finalidade do mundo corpóreo, e as coisas deste mundo só terão valor e permanência, ou possibilidade de permanência, na proporção em que participarem das ideias. Nosso valor como criaturas humanas não depende do que possuímos materialmente, mas de nossa participação nas ideias, e sobretudo, nas ideias do Bem e do Belo.

É conveniente, como diz Gonzague Truc, lembrarmo-nos de que a teoria das ideias não é fantasiosa nem simplista, como pode parecer numa tentativa de exposição apressada com a finalidade de dar ao leitor uma visão apenas informativa do Platonismo. A teoria é complexa, envolvendo problemas difíceis e sugerindo debates que o próprio Platão iniciou em seus diálogos, como se vê, por exemplo, na segunda parte do Parmênides e na sequência dos chamados "diálogos lógicos": Teeteto, O Sofista, O Político, O Filebo e assim também no Timeu, esse tratado do Ser.

As ideias constituem uma necessidade lógica para a compreensão do mundo e para a existência da ciência. Porque não pode haver ciência do incerto, do efêmero, do inconsistente, como é o mundo sensível. Somente o inteligível, o mundo das ideias oferece base "sólida" para a permanência das coisas. Os homens, por exemplo, são efêmeros. Nascem e morrem todos os dias. Mas a idéia do homem é permanente, e portanto, real. Dela derivam os homens como reflexos no espaço, como seres intermediários formados no Não-Ser e evoluindo para o Ser, através da participação.

O mito da Atlântida, que aparece no Timeu, ilustra com precisão a necessidade de alcançarmos o mundo das ideias e, portanto, do estável para compreendermos o mundo. Tenha sido real ou não a existência da Atlântida, no Timeu a sua função é mítica. Todo um continente populoso e rico, situado a oeste das Colunas de Hércules desaparece no espaço de um dia e uma noite, tragado pelas ondas.

Os atlantes se preparavam para invadir as cidades gregas, e somente os atenienses se dispunham a enfrentá-los. Mas a luta não se realizou por causa da inesperada catástrofe. É assim o sensível. O mundo da incerteza, da instabilidade, a que somente os ignorantes podem apegar-se considerando-o sólido e firme.

Timeu explica então a formação do mundo, que não surge do nada, como na Gênese, porque a eternidade não tem princípio nem fim e o mundo é eterno. Por isso mesmo ele surge, por assim dizer, de si próprio, de duas essências já existentes, a mutável e a imutável, que lhe constituem a alma, e os elementos materiais, que lhe constituem o corpo. O Demiurgo, ou Artesão, é o Deus-Construtor, que faz o mundo e o liga ao Ser, ao Todo; aquele que é e não sofre mutações.

O homem não é construído pelo Artesão, mas por seus auxiliares, deuses menores, incumbidos, por assim dizer, dos retoques da construção. Esses deuses menores serviram-se do material que sobrou da feitura do mundo para fazerem as almas dos seres que habitam a Terra e a Lua. O mundo é esférico e só tem um movimento, que é o movimento perfeito: a rotação. As almas dos seres assemelham-se à do mundo, mas são imperfeitas. Por isso, os seres têm vários movimentos.

Mas os deuses menores introduziram nos homens duas almas inferiores, que são perecíveis. A alma eterna, que é esférica, semelhante à do mundo, foi colocada na cabeça: é a racional. As outras duas são a irascível, colocada no peito, e a apetitiva, no ventre. Assim, os homens são seres em conflito, a razão em luta permanente com as paixões e os apetites das almas inferiores e perecíveis que carregam no corpo.

O Demiurgo não devia fazer as almas dos seres humanos, porque então estes seriam divinos. Limitou-se a preparar as suas sementes com o resto do material da alma do mundo. Essas sementes de eternidade constituem a razão diretriz do homem, que deve superar os tumultos produzidos no corpo mortal pelas paixões e os desejos das almas mortais e pelas fermentações do processo nutritivo. Quando a semente divina, que guarda a reminiscência do mundo das ideias, consegue manter o controle do corpo, temos o homem sábio, que cuidará de sua alma, imitando o modelo divino do Bem, salvaguardando a sua natureza humana.

Em princípio, todas as almas são humanas e masculinas, mas depois, em consequência da indocilidade resultante do tumulto dos apetites inferiores, essas almas desobedecem os seus demônios – o que nos lembra a obediência de Sócrates ao demônio, que deve ser seguida por todos –, e então decaem, encarnando-se em corpos femininos e depois em animais, segundo suas faltas.

Curioso, entretanto, que não é pela vontade plena que a alma decai, mas pelas circunstâncias desfavoráveis que a cercam: o estado inferior do corpo, as deficiências da educação e as más condições políticas do meio. Mas isso não isenta a alma de culpa, pois a reminiscência das ideias a ajuda, e o seu demônio a adverte sempre dos perigos a que ela pode escapar, dando preferência aos prazeres do intelecto sobre os gozos sensuais. Sua condição, portanto não é de escravidão absoluta, de sujeição fatalista ao estado corpóreo, pois a semente divina detém o livre arbítrio, o poder de escolha. Ela não tem culpa – como diz Robin – de haver querido o mal, mas de haver permitido, por negligência, que este a dominasse. A essência do todo é boa e não má, e a alma racional não tem desculpa quando se afasta do bem. Compreende-se, assim, porque esta ontologia platônica influenciou tão poderosamente o pensamento cristão, de tal maneira que Platão pode ser chamado o demiurgo da filosofia cristã forjada na Idade Média.   Os princípios da queda, da culpa, da liberdade de escolha e da bondade de Deus, bem como da salvação, estão todos presentes nessa teoria das almas.

Duas coisas, porém, não se encontram em Platão; o problema do mal consciente ou satânico, e a condenação eterna. As almas racionais, que sabem salvaguardar a sua condição humana, evoluem para a felicidade, libertam-se das contradições corpóreas e vão viver, depois da morte, nas estrelas que lhes são destinadas, mundos de ventura infinita. As almas racionais que caem na voragem dos sentidos passam pelas encarnações inferiores até que, pela sucessão dolorosa das provas, aprendam a preferir o bem. Então se libertarão como as outras, com o triunfo inevitável da razão.

Deus povoou não apenas a Terra e a Lua, mas também os planetas, com os seres corpóreos, dotados da semente divina ou alma racional. E todos esses seres terão de desenvolver a sua divindade através da humanidade, pois caso contrário a própria obra de Deus estaria comprometida.

A alma do mundo também está sujeita a quedas, e isto é importante para o homem, pois tem nesse fato a razão cósmica da sua falibilidade. Já vimos que a alma do mundo foi constituída de duas essências – a imutável e a mutável –, e podemos dizer, em termos de psicologia moderna, que na primeira se estrutura a consciência, e na segunda, a subconsciência cósmica.

Se o mundo não segue a razão mas cai nas leis da necessidade, que equivalem às dos apetites e paixões no ser humano, pode desorganizar-se e acabar numa catástrofe. Assim, há duas ordens fatais no universo: a ordem racional, que é a normal e conduz ao divino, e a ordem da necessidade, constituída pelas leis inferiores, subordinadas àquela. A alma, tanto a do mundo quanto a dos seres que o habitam, goza do direito de escolha entre essas duas ordens; mas uma vez feita a escolha terá de sujeitar-se às suas consequências inevitáveis.

O mal pois, não é satânico, intencional, dirigido por um competidor de Deus, mas natural, decorrente da própria estrutura do todo. Entretanto, é sempre subordinado e nunca prevalece, pois tanto o mundo quanto o homem, caindo na ordem da necessidade, acabarão saindo para a ordem da razão através das sucessivas existências depuradoras. Nessas existências, a alma se despojará dos elementos mutáveis para integrar-se em sua natureza imutável e divina.

 

A UTOPIA PLATÔNICA

 

Da realidade platônica, constituída pelo universo ideal que para o comum dos homens é a própria irrealidade, passamos naturalmente com a maior de suas obras, A República, para a utopia platônica. Exatamente no terreno da vida política, da estrutura social, onde a realidade se mostra mais gritante é que Platão vai traçar o grandioso painel da sua utopia.                                            

Nada mais coerente, entretanto, do que isso. A vida social e política da Grécia no século IV a. C. estava em plena decadência. Atenas submergia num individualismo feroz e num cosmopolitismo dissolvente. O filósofo via com seus próprios olhos o domínio das partes inferiores da alma na sociedade do seu tempo. E o que propõe com A República é uma inversão desse estado de coisas para que a sociedade volte a ser dirigida pela alma racional.

Num lúcido estudo sobre o fato, Julián Marías chega ao exagero de propor, como base de todo o filosofar platônico, a sua aversão pelo mundo político do tempo. Suas conclusões derivam do estudo da sétima carta do filósofo dirigida aos parentes e amigos de Díon, assassinado em Siracusa. Nessa carta, diz Marías, Platão repete "[…] de maneira clara o seu pensamento, tão mal-entendido, da República".

Windelband também assinala o que se pode chamar a transferência platônica, da política para a filosofia. Mas é por certo exagero atribuir às circunstâncias políticas o desenvolvimento do gênio filosófico de Platão. Por mais que A República represente a sua vocação política, e por mais que o filósofo tenha tentado realizar em Siracusa uma experiência da sua utopia, parece-nos inegável que tudo isso é uma consequência e não uma determinante do filosofar platônico.

Filho de Aríston e Perictione, nasceu Platão em Atenas, na primavera de 427. Tanto pela linhagem paterna, quanto pela materna, pertencia à aristocracia ateniense. De um lado, se aparentava com Codro, de outro, com Sólon. Teve, pois, a mais esmerada educação e dominou bem cedo a cultura da época. Interessou-se pela política e pelas letras, iniciando-se na literatura. Mas logo sentiu a atração da filosofia, e seu encontro com Sócrates, possivelmente aos vinte anos de idade, decidiu os rumos do seu pensamento.

Depois da morte de Sócrates, Platão empreendeu, com outros discípulos do mestre, uma viagem a Mégara. Logo mais, viajou para Creta, o Egito e a Cirene, voltando a Atenas em 395. Um lustro mais tarde, viajou para a Magna Grécia e a Sicília, tendo nesta se familiarizado com a corte do tirano Dionísio, o Maior. Tomou-se amigo íntimo do cunhado do soberano, Díon, que se interessou vivamente pela sua doutrina.

Duas vezes tentou Platão ensaiar a sua utopia na corte de Siracusa, mas em ambas fracassou. Numa terceira viagem à corte foi tentar a conciliação de Díon com o novo tirano, Dionísio, o Jovem, e por pouco não perdeu a vida. Sua grande esperança era a de conseguir uma experiência prática da sua política no reino. Na primeira tentativa, o tirano pai o fez prender como escravo e vender no mercado de Egira, onde Anicere, um cirenaico, o salvou. Então voltou para Atenas e fundou ali a Academia.

A insistência de Platão nas viagens à Sicília, com dificuldades de toda espécie e riscos de vida, interrompendo até mesmo suas atividades docentes em Atenas, revela sem dúvida o seu grande interesse pela política. Mas não devemos esquecer-nos de que essa política nascia do seu filosofar sobre o mundo e os homens. A República é uma consequência lógica e necessária da sua descoberta do mundo das ideias. É a aplicação do conhecimento adquirido em favor das almas mergulhadas na matéria.

Não seria necessário que Platão tivesse qualquer vocação política para interessar-se inevitavelmente pelo assunto. Mais do que as suas tendências da juventude e as suas decepções com o mundo grego, a oportunidade que entrevira em Siracusa despertaria o seu entusiasmo de filósofo de homem que descobrira nas ideias o mecanismo do mundo e desejava provar na prática o acerto da sua teoria.

          Não nos esqueçamos ainda, o que é muito importante, que dos três motivos determinantes da queda das almas dois são as deficiências da educação e as más condições políticas. Natural que Platão arriscasse a sua comodidade, os seus afazeres em Atenas e a própria vida para tentar o ensaio de sua República em Siracusa. Já vimos que a República platônica é o inverso da falsa democracia ateniense, em que prevalecem as paixões e os apetites das almas inferiores. Nela, os homens deverão ser educados para o exercício da razão, e somente os que mais desenvolverem a alma racional assumirão os postos dirigentes. É a República filosófica, o reino do saber. O domínioluminoso do bem e da justiça, onde a educação e a política serão meios de salvaguarda da natureza humana, em vez de instrumentos de sua corrupção contínua. A polis ideal e, por isso mesmo, a única verdadeira, natural, não corrompida.

Antecipando o organicismo de Spencer, a República terá uma estrutura antropológica. Assim, como um corpo vive graças à perfeita união e colaboração natural de seus órgãos, assim deverá ser a verdadeira polis: a cabeça mandará, o coração garantirá a integridade orgânica, os membros executarão os trabalhos necessários. Isso no que tange ao plano físico, pois no metafísico tudo se traduzirá em termos anímicos; a alma racional governará e as almas inferiores, sujeitas a ela, não provocarão conflitos no organismo, mas pelo contrário, revelarão a sua utilidade.              

A alma irascível desenvolverá a coragem, e a concupiscível, a produtividade. A República é assim a imagem do homem justo, prudente e operoso, o que vale dizer: do homem sábio, do filósofo. A utopia platônica não é apenas organicista, é um pouco mais, pois é antropológica, na mais lata expressão do termo. Platão, antes de Spencer, já o ultrapassara.

Mas assim como a República será a imagem do homem justo, os Estados tumultuários, impulsivos em que vivem os povos, são imagens do homem inculto que os constitui. É o que Platão deixa bem claro nestas palavras de Sócrates a Glauco, no livro IV da sua utopia:

Temos de convir que nos indivíduos se encontram as mesmas paixões e os mesmos hábitos que vemos no Estado. E foi dos indivíduos, por certo, que passaram ao Estado. Seria mesmo ridículo supor que o gênio irascível atribuído a certos povos, como os trácios, os citas e os do Norte em geral, ou o gosto da instrução, que aprece natural na nossa gente, ou a avidez do lucro, que caracteriza os fenícios e os egípcios, não tenham passado do indivíduo para o Estado.

E Glauco responde:

A mim também me parece.

A República evitará esses desequilíbrios pela boa distribuição das tarefas entre os homens. Sua ordem social se constituirá de três instâncias, correspondentes às três partes da alma. No alto, estará a classe dos guardiães, constituída pelos filósofos, que dirigirão o Estado; imediatamente abaixo, a dos soldados, que o defenderão e garantirão integridade de sua estrutura; e na base, o povo, que exercerá as funções nutritivas.

Não se pense, porém, na injustiça de uma formação de castas. O regime comunista evitará esse perigo, e principalmente a educação coletivista, que terá por meta o bem do Estado em consonância com o do indivíduo, e não apenas deste. Assim, os filhos dos guardiães deverão ser os melhores para suceder os pais, mas os filhos dos guerreiros e dos artesãos poderão apresentar melhores qualidades e serão elevados de classe, enquanto os guardiães, rebaixados.

O comunismo na classe dos guardiães será completo: até mesmo as mulheres e os filhos são comuns. E os oráculos exercerão uma grande função diretiva no Estado, pois deverão ser consultados sempre que necessário. A mentira também terá o seu lugar, pois ela, como a verdade, é útil à felicidade comum: os magistrados terão o direito de usá-la em favor do bem público. A música e a ginástica serão fundamentais na educação dos cidadãos, e quanto à música, não serão permitidas as inovações a pretexto de modernização, pois essas inovações podem minar a estrutura do Estado por sua influência nociva sobre as almas. A realização do belo individual e social terá de ser preservada sempre.

Da República, entretanto, Platão evoluirá para uma nova concepção política. Através do diálogo O Político, em que refletirá suas meditações sobre Díon, o Amigo de Siracusa vítima da tirania, o filósofo chegará ao seu último livro, As Leis. Substituirá então o regime republicano pela tirania ilustrada, ou se quisermos nos servir do exemplo histórico dos reinos europeus da época das luzes, pelo despotismo ilustrado. Entretanto, o que parece mais certo é a afinidade do regime de As Leis com os sistemas totalitários modernos, o fascismo e o nazismo.

O tirano platônico é assessorado por um filósofo legislador, que exerce funções semelhantes às dos conhecidos assessores das referidas ditaduras. Desaparecem as classes correspondentes às partes da alma humana. O Estado perde o seu sentido antropológico e procura amoldar-se à imagem divina do cosmos, através da matemática e da astronomia. A ideia do divino adquire absoluta supremacia, e a religião, dogmática e intolerante, torna-se a base do Estado. Passamos assim do plano humano d’A República para o cósmico de As Leis, onde a rigidez das leis naturais substitui o dinamismo harmônico das funções psíquicas.

Platão está no fim da vida, e tanto assim que não consegue fazer a última revisão em seu derradeiro livro. Devemos perdoar-lhe esse aspecto de anquilose mental, que se revela em As Leis. Aliás, é preciso notar que, ao lado da queda vertical do seu pensamento em matéria política, este último livro revela ainda o vigor de uma inteligência genial, na perscrutação dos problemas humanos.

Consta que morreu num banquete de bodas, cercado de admiração e respeito, em 347, já octogenário. Foi sepultado na Academia e deificado pelos discípulos. Entre os epigramas que serviram de epitáfio, Diógenes Laércio cita um que termina assim:

Ainda das regiões mais longínquas

Todo varão honesto

Venera a memória

Do filho de Aríston deificado.

ARISTÓTELES E A SUBSTÂNCIA

Platão é o escravo que saiu da caverna para a luz e que não mais voltou. Mas Aristóteles é aquele que, depois de subir a escarpa e aprender a discernir as sombras da luz voltou para a caverna. Não se deixou embriagar pela realidade metafísica. Lembrou-se de que as sombras físicas também devem possuir a sua própria realidade, pois até mesmo a ilusão é real para aquele que está iludido. Aristóteles voltou ao particular, sem esquecer o geral. É que, por trás do conceito, que Sócrates descobrira e que Platão erigira em suprema realidade, Aristóteles descobriu a substância. E viu, afinal, com seus olhinhos miúdos e argutos, que sombra e luz se misturam numa realidade que não é apenas ideal, mas também sensível.

Quem nos conta que seus olhos eram miúdos, e ao mesmo tempo que enxergavam longe e fundo, é Diógenes Laércio. E completa a imagem do filósofo com estes dados bem pouco lisonjeiros: era gago, de pernas finas, raspava a barba e cortava o cabelo, ao contrário do uso corrente, e gostava de roupas finas e anéis preciosos. É possível que a psicologia moderna explique essa elegância de vestuário e adornos como uma compensação das deficiências físicas. Mas também podemos supor que fosse uma decorrência natural da sua atitude filosófica. Se os seus antecessores desprezavam o sensível pelo inteligível, ele não o fazia. Pelo contrário, compreendia o valor das aparências e sabia que é das sombras da caverna que o homem pode partir para a realidade da luz.

Nascera em Estagira, na Trácia, aos 384 a.C., e era filho de um médico da corte de Filipe da Macedônia. Esse médico chamava-se Nicômaco, nome que Aristóteles daria ao filho, mais tarde, e figura ainda hoje no terceiro — e ao que parece, único autêntico — dos seus tratados de ética, intitulado Ética Para Nicômaco. Sua mãe chamava-se Féstias. Nada sabemos da sua juventude até os dezoito anos, quando entrou para a Academia de Platão, em Atenas. Ali permaneceu por vinte anos, até a morte do mestre. A seguir, lançou-se a algumas aventuras: andou pela Mísia e por Lesbos, a ilha famosa, casando-se primeiro com Pítia e depois com a cortesã Hérpilis, que lhe deu um filho.

Há curiosas histórias em torno do seu consórcio com Hérpilis. Diógenes Laércio diz que Arístóteles a tomou do tirano Hérmias, mas parece que este concordou com o fato ou lhe fez presente da concubina. Para outros, tratava-se de uma sobrinha ou irmã de Hérmias, que por sinal era eunuco. Aristipo conta que Aristóteles perdeu a seriedade filosófica ante a beleza de Hérpilis, chegando à heresia de lhe oferecer sacrifícios, como os atenienses faziam à deusa Deméter, e a compor um hino ao tirano. Tudo isso nos interessa como possíveis sintomas de sua rebelião futura contra o extremo idealismo platônico. Aristóteles sabia cultuar o sensível.

O culto herético de Aristóteles a Hérpilis não ficaria esquecido, assim como o seu formoso hino ao tirano Hérmias, de Atárnea. Ambos lhe custarão, pelo menos, pesados falatórios, que repercutirão em sua história. Diógenes Laércio dá uma versão do hino em seu livro, bem como de um epigrama que Aristóteles teria inscrito aos pés da estátua de Hérmias em Delfos, após a morte do tirano, pelos persas. Hérmias havia sido frequentador da Academia, o que justifica a grande amizade de ambos.

Windelband não acredita nas estroinices do filósofo, preferindo considerá-lo invulnerável às seduções do sensível. Brentano também protesta contra essas histórias e desmente as deslealdades do estagirita para com seu mestre Platão. Não há motivos, porém, para essas refutações de testemunhos históricos com base apenas nas teorias do filósofo. Aristóteles, afinal, tinha direito a fazer das suas. Tanto mais que as suas não foram tão graves: apenas serviram para mostrar a coerência do seu modo de agir com a sua atitude filosófica.

Por outro lado, os testemunhos históricos revelam que o filósofo, depois do casamento com Hérpilis, viveu feliz com a esposa. Esta lhe deu também uma filha. No seu testamento, que Laércio reproduz, há referências carinhosas à esposa. Não obstante, há também uma exigência que parece esperta, no tocante à possibilidade de novo casamento, como podemos ver: “Se quiser casar-se novamente, que não seja com homem desigual a mim [...]" A menos que Aristóteles fosse bem mais modesto do que foi, ele devia saber que essa exigência equivalia a impedir novas núpcias para a viúva. Basta dizer que a sua obra foi o coroamento da filosofia grega, a sistematização final do gigantesco painel delineado a partir de Pitágoras até Platão. Com ele, encerrou-se a era helênica do pensamento grego. Depois dele, só o dilúvio helenístico sobre o Império Romano e a submissão de toda a Idade Média à sua autoridade, tão indiscutível que negar seus princípios era arriscar a vida. Pobre Hérpilis, se esperasse encontrar um "igual" para casar-se de novo!

Mas lembremos ainda alguns dados. Em 343, Filipe da Macedônia lhe confiou a educação do filho, que seria mais tarde Alexandre Magno. Três anos depois, voltando para Atenas, Aristóteles fundou uma escola, num ginásio próximo ao Templo de Apoio Lício, de onde lhe veio o nome de Liceu. Dizem outros que Liceu era o ginásio, consagrado ao deus, e que a escola chamou-se Peripatética, em virtude de funcionar sob os pórticos que rodeavam o ginásio. Mas outros afirmam que o nome vem de sua forma de dar as primeiras aulas, andando ao redor dos pórticos ou ao longo de avenidas que rodeavam o ginásio. Windelband e Armengol entendem que o mais certo é provir o nome dos pórticos.

Durante doze anos Aristóteles ensinou no ginásio, até que a morte de Alexandre o obrigou a abandonar Atenas. Começa então a história de uma nova viagem, sobre a qual se teceram as lendas. Trataremos dela mais abaixo, pois já é tempo de entrarmos no gigantesco edifício do seu sistema filosófico.

 

INVENTOR DA LÓGICA

 

A verdade é que não poderíamos penetrar no sistema de Aristóteles com apenas algumas páginas. Ficaremos,  por certo,  nos  pórticos. Mas com isso lhe prestaremos, pelo menos, uma homenagem simbólica, fazendo um estudo peripatético da sua doutrina. Lembremos antes que a profunda diferença assinalada entre Platão e Aristóteles, quanto ao estilo literário, e que tem servido para muitos comentários errôneos, decorre de um simples capricho histórico. Platão foi beneficiado, pois dele nos ficaram os livros populares, que lhe dão a dupla fama de filósofo e de poeta. De Aristóteles, pelo contrário, só nos restaram os livros didáticos, que o mostram como um professor metódico, mas de estilo árido. Não nos esqueçamos de que Aristóteles também foi poeta. Um dos seus poemas chegou até nós em versão talvez não muito fiel, mas que basta para mostrar-nos uma elevada inspiração: é o hino à virtude, dedicado ao seu amigo Hérmias, e que tantos dissabores lhe devia causar.

Bréhier entende que os livros de Aristóteles, salvos do naufrágio histórico, não são mais do que “[…] notas redigidas por um professor para si mesmo, sem nenhuma busca de perfeição literária”. Como  se vê, as aparências iludem. Os historiadores e estudiosos que viram em Aristóteles um espírito árido e metódico, avesso à poesia que flui das obras de Platão, tomaram a nuvem por Hera. Da mesma maneira, os que viram em Platão um poeta incapaz do rigor didático de Aristóteles comeram gato por lebre. Temos, de cada um deles, uma face apenas. São ambos como a Lua. Giram de perfil em torno do nosso mundo.

O próprio Aristóteles chamava esotéricas as suas obras destinadas ao público, que se perderam. As que possuímos são as acroámaticas, “[…] curso destinado a alunos já adiantados, nos quais não se evitam nem a linguagem técnica, nem as dificuldades", segundo entende Gonzague Truc. Cícero falava do rio de ouro da eloquência de Aristóteles, e os fragmentos de alguns diálogos esotéricos, recolhidos por Rose, mostram que Cícero tinha razão. Aristóteles também sabia jogar com os diálogos poéticos, como Platão.  A história é que lhe foi madrasta, apresentando-o feio e gago à posteridade, como fizera com os contemporâneos.        

Depois das primeiras obras, chamadas juvenis, temos a série lógica, intitulada Organum, e destinada,  como indica o nome, a servir de instrumento da ciência. A seguir, na classificação de Bréhier, as obras de “filosofia primeira”, ou os doze livros das metafísicas; as obras sobre a natureza, ou físicas; as propriamente biológicas, tratando dos animais, a que se juntam também as referentes ao homem, inclusive estudos psicológicos e um tratado sobre adivinhação pelos sonhos; obras moraise políticas, entre as quais a Constituição de Atenas, primeira e única que nos resta das cento e muitas constituições de cidades reunidas pelo filósofo, que tinha — como se vê por esse caso e por seus trabalhos de classificação científica — o gosto bem moderno da colheita e organização de materiais de estudo. Esta breve indicação bibliográfica nos mostra a impossibilidade de entrarmos a fundo no gigantesco e labiríntico edifício do pensamento aristotélico. Os interessados terão de fazê-lo por si mesmos, reservando para isso, pelo menos, os anos de vida que ainda tenham pela frente.

Mas Organum, o instrumento cientifico de Aristóteles que constituiu a parte original e característica de sua obra, pode ser também o nosso instrumento de sondagem do seu sistema. Como os fruteiros, que calam melancias à vista do freguês, podemos tirar um pedacinho do sistema de Aristóteles e provar-lhe o gosto, através de Organum. Com essa série de livros, o estagirita se tornou, como chama Bréhier, “o inventor da Lógica”. Embora não seja bem assim, porque a lógica vem de mais longe, uma vez que Sócrates a ensaiou no tratado do conceito, Platão nas divisões e classificações dialéticas do sofista de Parmênides e, antes de ambos, os eleatas haviam jogado largamente com ela. Assim, Aristóteles não é propriamente um inventor ou criador da lógica, mas o seu primeiro e genial sistematizador.

Seu trabalho, entretanto, foi tão grandioso, sua sistematização tão ampla e minuciosa, que lhe coube a glória de transformar realmente os ensaios anteriores numa verdadeira ciência do pensamento. Bréhier lhe confere ainda o título de “inventor da Lógica formal”, e nesse caso tem toda a razão. Porque assim como Sócrates descobriu o conceito, Aristóteles descobriu o silogismo. Essa descoberta lhe serviu para construção original daquela parte da lógica que nos oferece as regras do raciocínio puro, independentemente do conteúdo do pensamento.

Mas o curioso é que da dialética platônica não nasceu apenas a lógica aristotélica, e sim, como diz Bréhier, toda a filosofia de Aristóteles. Na base da lógica encontramos a teoria da proposição, e ao afirmar, nessa teoria, que toda proposição se compõe de um sujeito e um atributo, Aristóteles mergulha no oceano das palavras, para não voltar a superfície senão depois de ter feito a sua grande descoberta: a da substância. O problema dialético se transforma em problema ontológico. Das palavras, Aristóteles passa à natureza do Ser. O sujeito se transforma em quididade, ou seja, na essência dada pela definição, na resposta à pergunta socrática: “O que é isso?”

Na verdade, quando Sócrates perguntava aos palradores o que significava esta ou aquela palavra por eles empregada, estava exigindo uma definição do conceito. Essa definição é a substância que Aristóteles vai surpreender por trás das palavras. O sujeito é a coisa, o quid, a essência, e o atributo é a qualidade. Calamos a melancia, e agora vamos experimentá-la.

 

A CIÊNCIA DO SER

 

A lógica aristotélica, que foi um desenvolvimento da dialética platônica, dominou o mundo antigo, o medieval e o moderno, exercendo ainda poderosa influência no mundo contemporâneo, não obstante o grande desenvolvimento da lógica moderna, simbólica ou matemática. Bertrand Russel sustenta que a lógica aristotélica é hoje uma inutilidade, e lamenta que “[…] mesmo em nossos dias, todos os professores católicos de filosofia, e muitos outros, rejeitam ainda obstinadamente as descobertas da lógica moderna, continuando, com estranha tenacidade, apegados a um sistema positivamente tão antiquado quanto à astronomia ptolomaica”. Garcia Baça, entretanto, sustenta que “[…] no Organum aristotélico já se encontram todas as partes da lógica moderna, em forma de gérmens”. E Russel mesmo confessa: “Aristóteles é ainda, principalmente na Lógica, um campo de batalha, e não pode ser tratado com espírito puramente histórico”.

A verdade é que a lógica aristotélica permanece como uma construção admirável do espírito de uma fase decisiva da evolução do conhecimento. Durante dois mil anos, os homens fizeram dela uma fortaleza inexpugnável da sabedoria antiga, o que a transformou num baluarte do passado, impedindo o progresso. Mas Aristóteles não tem culpa disso. Antes, pelo contrário, a culpa é exclusiva da incapacidade mental dos que o sucederam no campo da lógica. E o fato de haver ele transformado a dialética platônica numa ontologia positiva através do estudo das relações verbais, é por certo um dos mais estupendos acontecimentos da história do espírito humano.

Vimos como Aristóteles avançou para a descoberta da substância, na teoria da proposição. Mas o que é substância? — É aquilo que é. O sujeito, a coisa, o primeiro princípio. Se dissermos “Pedro é bom”, a substância é Pedro, pois é ele a coisa, e ele o princípio, e “bom” é tão somente o atributo. Assim, na metafísica, a substância é o Ser enquanto ser, a realidade que apareceu como tal e continuará como tal, mesmo depois que desaparecerem os seus atributos. Expliquemos melhor: se fabricarmos uma esfera de bronze, esta esfera, ao ser destruída, não desapareceu, porque a esfera existia antes da fabricação material e continua a existir depois. Este exemplo de Aristóteles nos mostra claramente que a substância é a forma dos seres. No caso presente, o bronze se ajustou à forma esférica, e a esfera de bronze, em substância, em realidade, é apenas uma esfera, porque o bronze é acidente ou predicado da forma.

Chegamos assim à doutrina de forma e matéria, que é o centro da metafísica aristotélica. Em lugar da ideia platônica, que pairava no abstrato e projetava a sua sombra na matéria, Aristóteles formula a teoria da forma, que é também abstrata, mas se estranha no concreto. Forma e matéria coexistem nas coisas. Mas, antes das coisas, há a matéria informe, que entretanto aspira a forma, e há a forma que a espera para incorporá-la em sua aparência. Surge então a teoria da potência e ato. A matéria, que pode ser forma, é potência. A forma é o ato em que a matéria se transformará. Mas as coisas e os seres do sensível não são atos perfeitos, porque a matéria está aquém da perfeição formal. O ato perfeito, ou puro, é somente Deus, pois nele não há potência, não há possibilidade, mas realidade plena. Por isso mesmo, ele é o primeiro motor imóvel que põe o universo inteiro em movimento, pela atração de sua atualidade absoluta.

Tocamos assim o ápice da cosmogonia aristotélica, derivada do estudo da palavra. Podemos dizer aqui, como no Evangelho de João, mas num sentido grego e não cristão, que no princípio era o verbo. Pois não foi do verbo que partimos para a substância, e desta para a forma e a matéria, para a potência e o ato, e afinal para o Ato Puro? Mas, para bem compreendermos esse painel gigantesco, precisamos ainda de alguns dados.

Por exemplo: as substâncias se dividem em três espécies,que são a sensível-corruptível, a sensível-não-corruptível e a que não é sensível nem corruptível. O nosso mundo pertence à primeira classe, os corpos celestes à segunda, e Deus e o espírito humano à terceira. No homem, as três classes se apresentam como no cosmos: o corpo orgânico é a substância sensível-corruptível; a alma é sensível-não-corruptível e o espírito, afinal, não é sensível nem corruptível. A substância do homem é assim a alma, que Aristóteles chama enteléquia do corpo. Na alma encontramos o espírito, que é a parte sobrevivente à morte. Este devia ser a substância, mas acontece que não é a forma do corpo, e sim uma parte da forma. O espírito corresponde à alma racional platônica.

Deus, Ato Puro, é imóvel, imutável. É o Ser eleático em que o movimento não é possível. Mas Deus é pensamento, e mesmo O pensamento. Entretanto, Deus só pode pensar nele mesmo, pois o pensamento de Deus só pode ser a perfeição, e a perfeição só nele existe. Deus é então pensamento do pensamento. Mas apesar de imóvel, Deus move o universo. É por isso que ele é o motor imóvel e o primeiro motor imóvel, porque abaixo dele existem outros motores imóveis, que são as estrelas fixas e os seres em ato, ou seja, as almas. Estas, na verdade, movem os corpos da mesma maneira por que Deus move o universo: pela atração. Deus atrai o cosmos como a criatura amada atrai o amante. Todas as coisas sobem para Deus, atraídas pela sua perfeição.

Todos os seres têm a idéia de Deus em si, e a própria matéria, que não pode pensar, entretanto aspira a Deus, motivo por que aspira à forma, que a aproximará de Deus. Há, pois, na matéria, um desejo latente, pelo qual Deus a move. Mas Deus não tem consciência da existência do cosmos. Pensamento do pensamento, imerso em si mesmo na absoluta perfeição, como poderia ele pensar o imperfeito? Deus também não criou o mundo, que é tão eterno como ele. Mas na sua perfeição absoluta, ele é a finalidade do mundo. Assim também a alma, que na sua parte superior, o espírito, é inteligência pura, move o corpo atraindo-o para ela. Cosmologia e psicologia se confundem. E a evolução, a ascensão de tudo para Deus, a transformação contínua da indeterminação da matéria na determinação da forma, fazem do universo aristotélico um mundo de mutações teleológicas que antecede de muito o surto evolucionista do século XVIII europeu.

Dessa psicologia cósmica resulta uma ética também de sentido cósmico, que se assenta no equilíbrio. Aristóteles não participa da ideia socrática de que o conhecimento é a virtude, mas subordina uma coisa à outra. O conhecimento é função do pensamento, e a moral é função da vontade. Mas, como o bem não pode ser alguma coisa contrária à razão, é evidente que o saber orienta a vontade. Existem, pois, duas classes de virtudes: as dianoéticas ou racionais, e as éticas ou práticas, volitivas. Estas consistem na manutenção do equilíbrio entre as paixões e os impulsos, na moderação, porque a virtude está no meio-termo. A subordinação da moral à razão torna possível o ensino da virtude.

Da ética individual resulta a ética política, pois o Estado é uma consequência da atividade individual. Mas, ao mesmo tempo, o Estado é o todo no qual se inclui o indivíduo, a ele subordinado. Ninguém pode viver fora do Estado, a não ser um deus ou uma fera, pois o homem é um animal político. O fim do Estado é o bem-estar dos indivíduos. Aristóteles reconhece a existência de três formas típicas de Estado, seguidas de suas formas típicas de degeneração: a Monarquia, que pode degenerar em tirania; a Aristocracia, em oligarquia; e a Democracia, em demagogia.

Quanto é exato esse esquema dos contrários pode ser verificado agora mesmo, pelo leitor que pensar na situação a que chegou a nossa democracia. E por fim, temos a poética, que é a última disciplina filosófica do sistema aristotélico, dando-nos o conceito estético de arte como mímese, representação das coisas na sua idealidade sem a limitação da matéria.

                

A ÚLTIMA VIAGEM

  

Concluída a digressão peripatética, voltemos à vida do filósofo para contarmos sua última viagem. Em 323, com a morte de Alexandre, a situação política de Atenas sofreu grande mudança, e o Partido Nacional Ateniense, considerando o filósofo suspeito por suas relações com os macedônios, o teria intimado a deixar a cidade. Aristóteles se retirou para Eubeia, onde possuía uma herdade que a mãe lhe deixara de herança. Ali, um ano depois, falecia, com 63 anos de idade, vítima de um mal do estômago que há tempos o perseguia.                          

Não é essa, porém, a versão registrada por Diógenes Laércio, que se apoia em informação de Favorino, nas suas Histórias Várias. Segundo essa versão, Aristóteles fora acusado pelo sacerdote Eurimedonte, presidente dos sacrifícios a Deméter, ou pelo sacerdote Demófilo, de haver praticado a heresia de sacrificar à beleza mortal de sua mulher Hérpilis, bem como de prestar louvores devidos aos deuses ao tirano Hérmias. Diante da acusação, o filósofo teria fugido para Eubeia. Léon Robin também registra a acusação “[…] de impiedade por motivos fúteis”, o que obrigara o filósofo “[…] a deixar o Liceu nas mãos de Teofrasto, para se refugiar na Cálcisa", na Ilha de Eubeia.

Eumelo, no livro V de suas Histórias, segundo registra Laércio, afirma que Aristóteles morreu em Atenas, bebendo uma dose de acônito para fugir à condenação por impiedade. Laércio faz mesmo um epigrama sobre esse suicídio heroico. Mas Eumelo engana-se em vários pontos sobre a vida de Aristóteles, e sua informação é posta em dúvida.

Consta ainda que o filósofo teria se defendido da acusação, produzindo ele mesmo a sua defesa, à maneira de Sócrates, e que ao fugir de Atenas justificara sua atitude dizendo que desejava evitar que os atenienses praticassem novo sacrilégio contra a filosofia. Windelband acredita que essas histórias foram inventadas, com o propósito de apresentar o fim de Aristóteles semelhante ao de Sócrates. Prevalece a opinião de que o estagirita morreu da maneira mais comum, de uma doença do estômago, após fugir da fervedeira de Atenas na revolta contra os macedônios.

 

Texto publicado originalmente no livro OS FILÓSOFOS, Ed. Paidéia.


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