(Aprox. 461 a.C. — 361 a.C.)
DEMÓCRITO
(Aprox. 461 a.C. — 361 a.C.)
Com Demócrito, Abdera se opõe a Atenas precisamentena época da chamada ilustração grega, quando se trava a batalha entre Sócrates e os sofistas. Este filósofo atomista é o reverso do seu compatriota e mestre, Protágoras. Não vai a Atenas senão para tomar conhecimento, rapidamente, do que ali se faz, e Atenas não lhe dá a menor importância.Não se interessa pela agitação sofística e não pretende ensinar os jovens gregos a jogar com palavras na vida política ou forense. Segundo as tradições, interessava-se apenas pelo estudo, procurando aprofundar o conhecimento da natureza, na qual incluía o homem. E vivia rindo das tolices humanas. Era o filósofo sorridente, como o chamou Zeller, ao tratar das numerosas anedotas a seu respeito.
Platão o ignorou, parece que intencionalmente, pois não podia fazê-lo de maneira alguma. A verdade é que Demócrito, esquecido, subestimado, negligenciado ao longo dos séculos, foi considerado na Antiguidade o êmulo de Platão. E hoje, quando a sua figura, a sua doutrina e a sua ação reaparecem nas pesquisas modernas, vêmo-lo como uma espécie de reverso da medalha platônica. Essa situação se torna clara quando verificamos que Demócrito é o físico por excelência, o continuador dos antigos fisiocratas, enquanto Platão é o moralista socrático. Windelband acentua o fato significativo de que ambos aceitam a doutrina da percepção, de Protágoras, mas dela partem para rumos diferentes.
Antes, porém, de analisar a posição deste filósofo — que em nossa era atômica assume importância imediata, superior à de Platão – vejamos alguns traços marcantes da sua vida que nos darão a sua impressionante figura humana. Como acontece com a maioria dos homens do seu tempo é difícil precisar-se a sua filiação e data de nascimento. Até mesmo quanto ao local surgiram as dúvidas, hoje felizmente desfeitas. Sabe-se que nasceu em Abdera, provavelmente em 40l a.C., e que seu pai se chamava Hegesistrato, tendo deixado razoável herança para os filhos, em número de três, dos quais o caçula era o filósofo.
Diógenes Laércio fornece-nos curiosas informações a respeito. Começa por uma história fantástica, segundo a qual Demócrito teria iniciado seus estudos com alguns magos caldeus que o Rei Xerxes teria deixado "por mestres a seu pai, quando se hospedou em sua casa". Isto faz supor elevada linhagem para o filósofo. Com estes professores o Jovem Demócrito teria aprendido a teologia e a astrologia dos caldeus, e certamente um pouco de magia, pois mais tarde veremos espalhar-se a sua fama de taumaturgo entre o povo. Não obstante, sua vocação não era para a magia, mas para a ciência. Deve ter sido o primeiro a descobrir o parentesco dessas duas formas de conhecimento, bem como o papel de transição entre elas, exercido pela filosofia.
A maior parte da herança paterna se constituía de bens imóveis. Demócrito preferiu a sua parte em dinheiro, tendo assim de receber menos que os irmãos. Estes desconfiaram de que havia artimanha no caso, mas parece que tudo acabou bem. Embolsando os cem talentos que lhe cabiam, Demócrito despediu-se dos irmãos e saiu a correr mundo. Em vez de permanecer em sua terra e trabalhar para o aumento da herança, como faziam seu irmão Damasto e sua irmã cujo nome nos escapa, desejava percorrer as fontes da sabedoria da época para aumentar o seu cabedal de conhecimentos. Informam Demétrio e Antístenes que Demócrito viajou para o Egito, a Caldeia, a Pérsia e as regiões do Mar Vermelho, passando ainda pela Índia e pela Etiópia. Segundo Diodoro, sua permanência no Egito foi de cinco anos, e Estrabão se refere às suas viagens pela Ásia.
Esse corta-mundo gastou a herança paterna em suas correrias. Voltou pobre para a terra natal, e teve então de enfrentar um grave problema: de acordo com uma lei vigente, quem tivesse dissipado os seus haveres no estrangeiro não merecia sepultura na pátria. Demócrito se salvou da situação incômoda em que se veria graças ao seu tratado do sistema cósmico, que submeteu à apreciação dos compatriotas. Estes se encantaram com a obra e lhe deram quinhentos talentos como prêmio. Demétrio e Hipóboto afirmam, porém, que os entusiastas eram parentes de Demócrito, e que lhe deram apenas cem talentos. De qualquer maneira, o tratado o salvou.
Não se pense, porém, que Demócrito fosse um mandrião. Antes de receber a herança e poder partir para o mundo, ele já se revelara, na casa paterna, bastante aplicado ao trabalho. Antístenes testemunha o seu apego aos exercícios de reflexão filosófica. Segundo afirma, costumava o jovem Demócrito sair para o campo, dirigindo-se aos sepulcros, onde se demorava em suas meditações. Talvez a presença da morte lhe estimulasse o raciocínio sobre os problemas da vida, mas o certo é que os sepulcros construídos no campo eram, naquele tempo, lugares quase sempre aprazíveis, não raro apresentando edifícios acolhedores.
Vê-se que Demócrito devia ter assegurado um crédito de confiança entre parentes e amigos antes de sua viagem pelo mundo. Aliás, as informações sobre o filósofo sorridente revelam um temperamento afável, que soube conquistar e manter, durante toda a sua longa vida, a simpatia dos contemporâneos.
Apesar disso, Atenas não o recebeu como devia. Nas suas andanças, Demócrito não podia deixar de visitar a famosa cidade, onde esteve e conheceu Sócrates, mas não se fez conhecer por este. Demétrio, que é uma das maiores fontes de informações sobre ele, revela-nos a sua modéstia, dizendo que, em Atenas, pouco se importando com sua própria glória, não cuidou de se fazer conhecido.
Parece que se encontrou com Platão, e que este admirou os seus conhecimentos, segundo supõe Trasilo. Mas Platão não estava em condições de exaltar o seu próprio rival, como demonstrou mais tarde, negando-lhe lugar em suas obras, qual o fazem hoje os nossos jornais, com o nome e os feitos dos seus desafetos. O próprio Demócrito teria declarado: “Fui a Atenas, e ninguém me conheceu”.
É ainda Trasilo quem nos dá uma informação preciosa: Demócrito teria sido um imitador de Pitágoras, ou pelo menos dos pitagóricos, tendo inclusive feito o elogio do mestre de Samos num dos seus livros. Cláudio Regino e um certo Apolodoro dizem ainda que Demócrito foi ouvinte dos pitagóricos e chegou a tratar com Filolau, o discípulo que escapara do atentado de Crotona, para divulgar o Pitagorismo no mundo. Embora não aceitasse a doutrina dos números, é evidente a influência em sua obra.
De uma insaciável curiosidade intelectual, Demócrito teve uma vida tão rica de estudos e observações como a de Platão. Aprendeu com Protágoras, com Anaxágoras, com Parmênides e Zenão, com Pitágoras e Filolau, com Heráclito recolheu muito da contribuição sofística, mas foi sobretudo de Leucipo que mais aprendeu. Foi o discípulo continuador do atomismo de Leucipo. E enquanto Platão desenvolvia o conceitualismo socrático, fiel às lições recebidas do seu mestre, Demócrito desenvolvia a teoria da percepção, de Protágoras, marcando assim, de maneira decisiva, o rumo diferente do seu pensamento.
Talvez o fato mais curioso, no confronto destes dois gigantes do pensamento grego, seja o seguinte: Platão, partindo do particularismo ético de Sócrates, devolvia à filosofia a ciência do geral; Demócrito, partindo da generalidade física de Leucipo, restabelecia a importância do particular. Foi ele, sem dúvida, quem abriu caminho para a revolução particularista de Francis Bacon, e a oposição do método indutivo da ciência ao método dedutivo da filosofa aristotélica e uma espécie de refração, no tempo, da oposição histórica entre Platão e Demócrito, na era grega.
O ESCRITOR
Ao contrário de Platão, não nos deixou Demócrito a possibilidade de apreciá-lo como escritor. De suas numerosas obras, só nos restam fragmentos. Entre os séculos III e V da nossa era, provavelmente, os seus livros desapareceram. Mais tarde, surgiram escritos que lhe foram atribuídos, como a correspondência apócrifa entre ele e Hipócrates, rejeitada pela análise crítica.
Trasilo oferece um quadro geral dos seus livros, dispostos em quinze tetralogias. Como se vê, uma grandiosa obra.
As primeiras duas tetralogias são de ordem moral, começando por um livro sobre Pitágoras, o que nos faz pensar na existência não só de oposição, mas também de semelhança entre o filósofo atômico e seu rival Platão. Somente depois de oito obras morais, entre as quais se vê uma sobre a bondade e a virtude, e um possível tratado Da Alma, que lhe daria precedência sobre Aristóteles no assunto, é que Trasilo enfileira as suas obras físicas.
Estas começam por um título de tratado geral do universo, o Grande Diacosmos, ou Grande Sistema Cósmico, que Teofrasto entende ser de Leucipo. A seguir, vem o Pequeno Diacosmos, ou Pequeno Sistema Cósmico, hoje reconhecido como de autenticidade inegável. Depois, temos uma Cosmografia, um livro sobre Os Planetas e outro que se intitula Da Natureza.
As influências dos antigos mestres se tornam evidentes nos títulos da obra geral de Demócrito, segundo a classificação de Trasilo, que Laércio reproduz. E há coisas curiosas nesses títulos, dignas de pesquisas e análises demoradas, que talvez pudessem revelar alguma coisa nova sobre o filósofo e o seu tempo, e particularmente sobre as conexões do pensamento grego na época.
Vejamos alguns exemplos. Entre os livros morais encontramos uma Tritogenia, que, como indica o título, é uma reafirmação pitagórica do poder genésico do número três, pois, segundo informa Laércio, é toda uma doutrina tripla sobre a origem das "coisas humanas". Entre os de matemática, encontramos um sobre Os Números, e entre os de música, um sobre O Ritmo e A Harmonia, ambos lembrando ainda o Pitagorismo.
Na série dos livros de matemática abundam os títulos astronômicos, revelando seu interesse pela astronomia, e mais provavelmente pela astrologia. Laércio lhe atribui também um livro Sobre as Letras Santas na Babilônia, e outro sobre a língua caldeia e frígia, o que viria confirmar as notícias de suas viagens pela Mesopotâmia. Um livro intitulado Da Tranqüilidade da Alma parece antecipar a doutrina estóica.
Demócrito-escritor invade todos os terrenos da indagação humana do seu tempo. Suas obras abrangem todo o conhecimento de então, indo da filosofia aos problemas da medicina e matemática, da arte aos estudos linguísticos, da física à religião e da metafísica à psicologia. Aristóteles abeberou-se fartamente nas fontes de Demócrito para elaborar suas obras de ciência natural.
Os escritores antigos que conheceram aquelas obras e puderam compará-las com as de Platão testemunham por Demócrito a mesma admiração que consagravam a este. Escrevendo em jônico, o abderita revelava um estilo cantante e límpido, em que os antigos admiravam, como diz Windelband: "[…] a clareza da exposição e o vigor sugestivo de sua vibrante linguagem". Os fragmentos que possuímos não bastam para a reconstrução desse estilo que tanto apaixonou os gregos. Deussen observa que esses fragmentos não justificam o entusiasmo dos antigos. Mas é evidente que não podemos julgar uma obra como a de Demócrito pelos trechos esparsos que nos restaram dela, e muito menos contradizer o julgamento daqueles que a conheceram na sua integridade.
Curiosa a semelhança da posição de Demócrito em relação a Leucipo, como a de Platão em relação a Sócrates. Ao que parece, Leucipo não escreveu obra alguma. Deve ter sido um filósofo de tipo socrático, que se limitava a meditar e a expor verbalmente a sua doutrina. O Grande Diacosmos, que Teofrasto se lembrou de atribuir a Leucipo, deve ser a exposição do pensamento do mestre, feita pelo discípulo. Equivale, assim, às exposições da doutrina de Sócrates por Platão. E o Pequeno Diacosmos seria, no caso, a primeira tentativa de exposição doutrinária do próprio Demócrito, já se libertando de Leucipo para construir a sua doutrina autônoma.
De qualquer maneira, temos na era socrática este curioso fato a registrar: dois mestres de filosofia, em posições contrárias diante dos problemas fundamentais do conhecimento, ensinavam sem escrever e fundavam escolas através de discípulos que eram grandes escritores. Outro fato curioso: os dois discípulos principais de Sócrates e Leucipo se deixam influenciar pelo sofista Protágoras, admitindo a sua doutrina da percepção. Assim, o pai da ilustração grega perfilha ao mesmo tempo a linha socrática e a democrítica, marcando-as fortemente com o seu relativismo, que em Platão conduz ao abstrato, e em Demócrito, ao concreto.
ATOMIZAÇÃO DO MUNDO
Duas vias, portanto, segue o pensamento grego a partir da teoria protagórica da percepção: a de Platão, que através do conceito socrático volta ao subjetivo, relegando a um plano secundário o mundo das coisas ou dos objetos; e a de Demócrito, que através do átomo de Leucipo leva ao objetivo, procurando resolver no plano físico a velha contradição entre o ser e o não-ser, o ente e a coisa, o on e a physis. Nessas duas direções, em que o pensamento se empenha em decifrar a realidade, temos duas grandes sistematizações: a de Platão, que "idealiza" o mundo, ou seja, que o converte em ideia, dando-lhe a estabilidade, a permanência eleática; e a de Demócrito, que "atomiza" o mundo e lhe confere a mobilidade extrema do fogo heraclitiano.
Julián Marías estuda lucidamente a mecânica dessa atomização, mostrando como, passo a passo, o pensamento grego vai descendo do empíreo à Terra numa redução progressiva da realidade aos elementos que a constituem. Essa "redução da realidade a elementos cada vez menores", para usarmos a sua própria expressão, se verifica nas seguintes etapas: primeiro, o apelo à maleabilidade do fogo, em Heráclito, como possível explicação das coisas; depois, a formulação, por Empédocles, da teoria dos elementos, que se mostra incapaz de resolver o problema da geração e do movimento, o que o leva a apelar aos resíduos míticos da luta entre o ódio e o amor; depois, Anaxágoras "dá um passo decisivo" com sua teoria das homeomérias, pequeninos elementos que constituem as coisas e que já trazem em si as formas das coisas; e, por fim, Leucipo e Demócrito, com a teoria atômica.
Neste momento, o ente eleático, e com ele a realidade, que é ele mesmo, se reduzem a uma poeira atômica, um nevoeiro extremamente móvel e brilhante que invade o infinito. O cosmos foi devolvido ao caos. E é preciso que surja um novo deus Marduk para partir esse caos em dois, num vigoroso golpe de espada, e dele arrancar novamente o cosmos.
Esse deus é o próprio Demócrito. Um deus sorridente, afável, irônico, que vive rindo da tolice humana, e de quem a tolice se vingará, por muito tempo, relegando-o ao esquecimento. Demócrito pertence a uma época de renovação, a época do iluminismo grego. Ao contrário de Heráclito, que chorava sobre as misérias humanas confinado na atmosfera fechada da cidade solitária, Demócrito alarga suas vistas sobre o vasto mundo que surgiu das guerras médicas, numa Grécia cosmopolita. As ambições dos homens, antes limitadas ao âmbito da cidade da antiga polis, agora se ampliam de maneira desmedida, oferecendo ao filósofo muitos motivos de riso.
Demócrito é como um Voltaire grego, menos ferino, talvez, e mais compreensivo. Seu saber é tão vasto que, em toda a Antiguidade, só poderá ser comparado ao de Aristóteles. Pode, pois, jogar livremente com os dados da sabedoria do seu tempo para realizar a sua obra. E é por isso que de suas mãos poderosas, que esmagaram a realidade, pulverizaram o mundo, atomizaram a homogeneidade eleática do Ser, um novo cosmos vai surgir. Como um demiurgo alegre, Demócrito vai tomar a matéria cósmica e plasmar com ela um novo universo.
A CONSTRUÇÃO ATÔMICA
Com Leucipo, aprendera Demócrito a instabilidade das coisas e dos seres, cuja aparência estável se reduz, na realidade, a um jogo de pequeninas partículas no vácuo. Heráclito e os eleatas confirmavam essa visão instável. Mas Protágoras lhe ensinara que a nossa percepção das coisas se faz através do movimento. Aquilo que Leucipo e os eleatas não podiam explicar, Demócrito explicará com a teoria de Protágoras.
As coisas, formadas de átomos em movimento, adquirem qualidades diversas, que não pertencem a elas mesmas, mas resultam do nosso processo de perceber. Os átomos se movem por necessidade, pois o movimento, como diz Liepmann, “[…] é uma forma necessária do existir". E nessa eterna movimentação os átomos se encontram, se chocam, se unem e se desunem, produzindo o aparecimento e o desaparecimento das coisas.
A construção atômica do mundo, como se vê, é tipicamente mecânica. Nada acontece, nem existe, sem o entrechoque dos átomos. Entretanto, estes não se movem pela vontade dos deuses, mas por uma determinação intrínseca, de sua própria natureza. Movem-se por necessidade. Porque não podem deixar de mover-se sem deixar de existir, uma vez que o movimento é a sua própria existência.
Estamos assim num momento materialista do pensamento grego. O Ser atomizado transformou-se em matéria, e esta não tem mais vontade, só tem necessidade. Excluída a vontade da ordem universal, exilados os deuses, resta-nos apenas um universo mecânico. Esse é o universo que surge da análise de Demócrito. Um frio e imenso universo atômico, onde só existe uma lei, que é a necessidade. À maneira dos anatomistas modernos, que depois de dissecarem um cadáver se admiram de não terem encontrado a alma, Demócrito, depois de reduzir o universo a uma poeira atômica, também se espanta com o vazio cósmico.
Vejamos, porém, como os átomos se ligam para formar as coisas. Infinitos em número, eles povoam o vácuo. São invisíveis, porque extremamente pequenos, e movem-se individualmente no espaço. Quando se reúnem, como os pombos em torno de milho, num lugar qualquer, provocam um torvelinho, que quanto mais gira mais vai atraindo outros átomos, até formar uma grande massa de matéria.
É assim que o invisível se torna visível. Por acumulação. A junção dos átomos produz a massa, e essa é a matéria tangível. Mas essa matéria se desfará novamente, e o visível tornará ao invisível tão logo os átomos, por seu próprio movimento necessário, de novo se desagreguem. Eis, pois, a explicação do grande mistério. As coisas nascem do vácuo, do nada, porque o nada, na verdade, está cheio de átomos.
Na formação da massa de matéria as leis atômicas exercem ação determinante. Os átomos, que mudam de tamanho e de forma, ajustam-se de acordo com essas variedades. Os mais grosseiros se reúnem no centro da massa, movendo-se com mais lentidão e formando o núcleo pesado da matéria. Os mais finos e sutis se reúnem ao redor, formando uma capa, uma espécie de polpa. Esse conjunto se mantém em movimento, e da sua rotação constante surge na periferia uma espécie de casca.
Temos assim a imagem perfeita de um fruto, com a casca a polpa e o caroço. Três fatores essenciais determinam o aspecto das coisas individuais, assim formadas: a figura, a direção e o contato-mútuo. Em Aristóteles, essas coisas mudarão de nome. Serão forma, posição e ordem. Quer dizer que as coisas possuem qualidades próprias, determinadas pela forma dos átomos que as compõem, pela posição em que se ajustaram e pela ordem em que se dispuseram no conjunto. Mas essas qualidades naturais e necessárias não são as que percebemos. São qualidades primárias, que pertencem à coisa em si, ao número kantiano. Ao influírem na nossa percepção, essas coisas provocam imagens que são modificadas pelo movimento dos nossos próprios órgãos sensoriais. Essa reação dos nossos sentidos atribui às coisas propriedades secundárias, como a cor, o sabor, a temperatura, e dessa dialética é que vai nascer o mundo que conhecemos.
A teoria dialética da modificação das coisas pela reação dos sentidos enfraquece o materialismo de Demócrito. O subjetivismo impõe-se de maneira decisiva na sua concepção do mundo. Por outro lado, o filósofo admitia um conhecimento da realidade absoluta, por meio da intelecção, refutando assim o relativismo cético de Protágoras. Pela sensação, o homem obtinha o conhecimento relativo da realidade, sempre imperfeito e muitas vezes pessoal; mas pela intelecção e, portanto, pelo pensamento, podia obter o conhecimento completo e perfeito.
No conhecimento relativo, temos apenas os fantasmas das coisas, ou a aparência dos torvelinhos atômicos; no conhecimento absoluto, temos a realidade espacial e atômica, a visão perfeita do espaço cruzado pelos átomos e das aglomerações destes. Windelband acentua o caráter matemático desta concepção, que aproxima Demócrito de Platão, como já o notara Sexto Empírico.
Apesar, pois, de sua notável sistematização do atomismo de Leucipo, não é Demócrito o primeiro nem o maior dos materialistas gregos. Apesar da apologia que lhe fazem os materialistas modernos, imaginando uma luta mortal entre ele e Platão — a ponto de afirmarem, alguns, que este queimou as obras daquele —, a verdade é que Protágoras merece a palma, com sua poderosa teoria da percepção, muito mais objetiva, mais cética, mais materialista do que a doutrina de Demócrito. Basta dizer que enquanto Protágoras sustentava a impossibilidade do conhecimento absoluto, reduzindo o conhecimento humano aos limites sensoriais, Demócrito admitia aquilo que hoje chamamos, em Parapsicologia, de percepção extra-sensória.
Parece-nos lícito dizer que Demócrito foi antes racionalista que materialista, antecipando historicamente a posição cartesiana na procura da verdade através do cogito. Sua teoria da percepção, ou melhor, sua gnosiologia, pois na realidade se trata de todo o mecanismo do conhecimento, não deixa dúvidas a respeito dessa posição.
OS FANTASMAS DE DEMÓCRITO
Basta analisarmos o problema dos fantasmas, no processo da percepção, para compreendermos que Demócrito superou o materialismo de Protágoras, abrindo perspectivas para uma compreensão mais ampla do mundo e da vida. Os fantasmas são apenas as imagens das coisas, as aparências apreendidas pela percepção. Essas imagens, como já vimos, são produzidas pelos movimentos atômicos, e por sua vez, modificadas pelas reações dos nossos sentidos, que nada mais são, também, do que movimentos atômicos.
Mas, para Demócrito, tudo se constitui de átomos, de maneira que o próprio pensamento não é outra coisa senão movimento atômico. Daí a firmeza com que os materialistas modernos o classificam na sua grei. Entretanto, há mais complexidade do que lhes parece, na proposição de Demócrito.
Windelband estuda carinhosamente o problema dos fantasmas para concluir que a intelecção funciona da mesma maneira que a sensação. Realmente, os nossos sentidos nos dão a imagem do mundo graças à ação dos fantasmas sobre eles, ou seja, a penetração das imagens do mundo exterior em nossos órgãos sensoriais. Como o pensamento é idêntico, por sua natureza, à percepção sensorial, é forçoso que a intelecção seja também afetada pelos fantasmas. Acontece, porém, que os fantasmas da intelecção constituem-se de átomos sutis, os chamados átomos de fogo, que estão na essência e na origem das coisas. São átomos que os sentidos físicos, demasiado grosseiros, não podem captar. Átomos e fantasmas, portanto, que escapam à percepção sensorial, mas que são captados pela nossa intelecção de maneira extra-sensória.
Curioso que em nossos dias, ao mesmo tempo em que a doutrina atômica de Demócrito se confirma pelas experiências físicas, sua teoria da percepção extra-sensorial é também confirmada pelas experiências parapsicológicas, realizadas com todo o rigor científico a partir dos trabalhos de Joseph Rhine, na Duke University, nos Estados Unidos.
Não podemos furtar-nos ao prazer de oferecer aos leitores um trecho de Windelband sobre o problema. Depois de assinalar que infelizmente não possuímos fontes seguras para descrever o processo da percepção extra-sensória em Demócrito, lembra Windelband que a comparação com o processo da percepção sensória se impõe diante da natureza idêntica das funções perceptivas e mentais. E esclarece: "Ora, se Demócrito considerava que o pensamento é o movimento mais sutil dos átomos de fogo, compreende-se que necessariamente considerava também que os fantasmas que o provocam são mais sutis, ou seja, aqueles em que se reproduz a verdadeira configuração atômica das coisas. O pensamento é, pois, a intuição direta da mais primorosa estruturação da realidade: a teoria atômica. Na grande massa dos homens, esses sutilíssimos fantasmas passam inadvertidos em virtude das rudes e violentas impressões que se produzem nos órgãos sensoriais; mas o sábio é sensível a eles, embora necessite, para apreendê-los, afastar a sua atenção dos sentidos”.
Como se vê, o materialismo de Demócrito é bastante diferente das teorias estreitas que sufocam o pensamento nos lindes da matéria grosseira. Trata-se, antes, de um objetivismo racionalista que permite a objetivação em plano superior ao da matéria, o que vale dizer, que afasta os problemas metafísicos do plano do mistério e do sobrenatural para integrá-los numa estrutura lógica e, portanto, no natural. Essa estrutura lógica é possível pela teoria da graduação atômica. Desde que os átomos se dividem em graus e seus movimentos se processam na razão direta de sua configuração e densidade, é claro que a estrutura do universo apresenta faces diferentes, que vão desde a impossibilidade de percepção sensorial até a mais plena e grosseira percepção física.
Mas a graduação não invalida a unidade atômica do universo, apenaslhe permite variações na unidade.
É por isso que Demócrito não aceita somente os fantasmas da percepção sensitiva ou intelectiva como processos comuns de contato com as coisas conhecidas do exterior, mas admite também a percepção de fantasmas de verdade, ou seja, de entidades metafísicas. Windelband assinala: "Existem testemunhos de que também os sonhos, as visões e as alucinações eram reduzidos por ele a esses fantasmas, considerados como seus causadores, pois também nesses casos estamos em face de representações que nos são igualmente proporcionadas por impressão corporal, mas não pelas vias ordinárias da percepção, através dos sentidos. E Demócrito, bem longe de considerar essas imagens como meramente subjetivas, atribui-lhes antes uma espécie de realidade por pressentimento".
PSICOLOGIA MORAL
Não é, pois, de se admirar que o atomismo de Demócrito, em vez de apresentar-se rigidamente materialista, abra perspectivas espirituais em sua filosofia. Se tudo lhe parece reduzir-se a movimentos atômicos no vácuo, nem por isso é necessário negar a existência da alma. Pelo contrário, essa existência se torna mais lógica, mais natural, mais compreensível.
A alma, como o corpo, é um conglomerado de átomos, mas de átomos de fogo, mais sutis do que os da matéria grosseira. Os movimentos desses átomos determinam o funcionamento da estrutura psíquica. Dessa maneira, em todos os órgãos sensoriais a percepção é realizada pela invasão de imagens ou fantasmas das coisas, que despertam nesses órgãos o movimento dos seus átomos anímicos. A dualidade cartesiana está bem presente nesse processo gnosiológico.
Não é de admirar, portanto, que dessa psicologia atômica Demócrito passe facilmente para uma ética da mesma natureza. Os sentimentos e os desejos não podem ser outra coisa senão movimentos atômicos, e especialmente dos átomos de fogo que constituem a alma. Estes átomos são de natureza sutil, e do seu equilíbrio depende a felicidade do homem. Mas assim como, no plano do conhecimento, o homem pode ser desviado da sabedoria, da verdade pelas aparências enganosas, pelos turbilhões de átomos grosseiros que lhe afetam os sentidos, assim também, no plano dos desejos e emoções, o homem pode ser desviado da felicidade.
Natorp registra um dos fragmentos morais do filósofo: “Agrado e desagrado são a norma do que convém fazer ou evitar.” Mas agrado e desagrado do espírito, e não do corpo; do pensamento, e não do físico. Outro fragmento, citado por Natorp e colhido em Diels, esclarece: "A paz interior surge nos homens pela moderação no prazer e pelo equilíbrio na vida, pois as deficiências e os excessos costumam transtornar a alma e produzir nela grandes agitações". O verdadeiro prazer está "[…] no movimento sutil e suave da atividade pensante”, como acentua Windelband.
Houve sérias discussões em torno da natureza atômica da ética de Demócrito, mas os fragmentos morais organizados por Natorp e as próprias premissas de que se deriva essa ética parecem invalidar sumariamente as opiniões em contrário. Seria estranho que num pensamento homogêneo e coerente, como se revela o de Demócrito, houvesse uma discrepância no terreno da Ética. E tanto mais estranho quando a psicologia atômica abre portas imediatamente a uma concepção ética singular.
Alguns comentadores consideram como resíduo mítico a doutrina, referida por Sexto Empírico, “[…] dos demônios que penetram nos homens em visões e sonhos, e exercem influências sobre eles", sendo em parte benéficos e em parte nocivos. Não obstante, são obrigados a reconhecer a coerência dessa teoria com os princípios da gnosiologia atômica.
A felicidade, para Demócrito, dependia do equilíbrio atômico da alma. Para se conseguir, entretanto, esse equilíbrio, era necessário o saber, o conhecimento, pois os átomos sutis se movimentam no plano mental, e só eles mantêm o espírito em estado de serenidade. Os átomos grosseiros, pelo contrário, originam torvelinhos tumultuosos, que perturbam a alma. O prazer sensorial está ligado ao plano das aparências, não tendo portanto o valor de realidade. A verdadeira felicidade e, consequentemente, o verdadeiro prazer, estão na paz interior, que assemelha o espírito a um mar tranquilo, bonançoso. As agitações sensuais provocam tempestades perigosas, que desvariam o pensamento e inquietam os sentidos, desequilibrando o homem.
Como se vê, a ética de Demócrito identifica-se à de Sócrates quanto aos resultados, embora fundamentalmente diversa quanto à construção. Sócrates joga com os conceitos para levar o homem à felicidade, através do saber. Demócrito joga com os átomos para o mesmo fim. Para um, como para o outro, a felicidade não está no exterior, mas no interior do homem.
Diz um dos fragmentos morais do filósofo: “Felicidade e infortúnio são coisas da alma. A felicidade não está nos rebanhos, nem no ouro. É a alma a morada da fortuna”. O que torna mais admirável essa concepção é a sua ligação direta com o todo universal, através da teoria atômica. O homem socrático pode parecer uma criatura à parte, cuja felicidade depende de um elemento particular, privativo da espécie: o conceito. O homem de Demócrito apresenta-se perfeitamente entrosado na estrutura cósmica, e para esse entrosamento não foi necessário o recurso pitagórico da metempsicose. Tudo se faz com naturalidade e dentro de um perfeito esquema lógico pela descoberta da essência atômica do universo.
Estranho, porém, que esse filósofo de lúcida e coerente concepção houvesse permanecido muito aquém dos pitagóricos quanto ao problema da estrutura cósmica. Para Demócrito, o cosmos era uma espécie de esfera atômica, suspensa no vácuo em meio ao infinito. Seu envoltório constituía-se de uma capa de átomos firmemente ligados. O interior da esfera estava cheio de ar, mas no centro da mesma repousava a Terra em forma de imenso disco, e na parte inferior se distribuíam os elementos sólidos e líquidos. Os astros eram corpos semelhantes à Terra, mas bem menores do que esta; e o Sol e a Lua tinham maiores dimensões.
Contrabalançando a pobreza dessa visão do universo existe a sua afirmação de que "[…] há inumeráveis mundos, sujeitos à geração e à corrupção". Isso nos faz supor que o universo esférico por ele descrito não era propriamente o todo, mas apenas o nosso sistema solar. E apesar do seu geocentrismo retrógrado, o fato de admitir outras esferas iguais pelo infinito afora reabilita aos nossos olhos a sua cosmologia.
Salve-se ainda a pureza da sua doutrina do movimento atômico, lembrando-se a advertência de Brieger quanto ao erro epicuriano da queda dos átomos. O "erro" é inteiramente de Epicuro, pois Demócrito se referia ao movimento dos átomos em liberdade no espaço, sem considerar nenhuma espécie de queda num sentido de movimento para baixo. Embora na visão esférica que nos deu do nosso mundo fosse possível a concepção de um movimento atômico dessa espécie, as pesquisas de Brieger mostraram que não tem procedência a atribuição desse pensamento a Demócrito. Assim, mais uma vez se salva a grandeza da sua visão cósmica.
Já o mesmo não se dá com referência à alma, problema que apresenta graves dificuldades na teoria atômica, por sua confusão com o corpo. Demócrito ensinava que os átomos psíquicos se distribuíam por todo o corpo, adquirindo funções diferentes nos diferentes órgãos. Segundo Lucrécio, cada átomo de fogo estaria "[…] como embutido entre dois átomos do corpo". Assim, com a morte, também a alma dispersaria, não havendo sobrevivência.
Como conciliar-se, porém, esse materialismo anímico e a sua doutrina dos demônios como entidades espirituais? Parece faltarem, no tocante ao problema da alma, como faltam no caso da sua teoria do conhecimento e da sua doutrina ética, elementos de conexão com o sistema geral. São Cirilo chegou a escrever que Demócrito dizia: "Deus é Mente, está numa esfera ígnea e é a alma do mundo". E Léon Robin lembra que o atomismo de Demócrito considera a existência da alma no ar como princípio de vida e também como princípio pensante.
HOSPEDEIRO DA MORTE
Demócrito, segundo informa Diógenes Laércio, teria vivido até aos cento e nove anos. Boa prova da validade da sua doutrina ética, ou pelo menos do seu bom humor.
O filósofo que vivia rindo das tolices humanas conservou-se jovem por muito tempo. E assim mesmo, quando a morte chegou, ainda lhe parece importuna. Demócrito, entretanto, não se apoquentou. Sua grande experiência do mundo e da vida permitiu-lhe encontrar um jeito de hospedar a morte, o que fez por nada menos de três dias.
O relato de Laércio é dos mais curiosos. Aproximava-se a época das festas a Deméter, a deusa das colheitas, a Ceres dos romanos, e o filósofo mostrava-se cada vez mais fraco. Parecia prestes a morrer, o que causava sérias preocupações a sua irmã, que via assim comprometido o culto da deusa. Demócrito, que apesar da velhice excessiva não devia ter perdido a agilidade mental, percebeu o que se passava e quis ajudar a irmã. Não acreditava nos deuses, ou pelo menos parecia não acreditar. Mas certamente não desejava ser, nos últimos dias, motivo de aborrecimento para a irmã que o protegia. Quando chegou o dia de início das festas, pediu à irmã que lhe trouxesse diariamente pães quentes e, colocando-os nas narinas, aspirava-os para conservar a vida.
Laércio não diz, em seu relato conciso, se o filósofo explicou ou não o estranho motivo por que sua alma, já cansada do mundo, apegava-se ao cheiro e às emanações do pão. Mas afirma que a morte teve de esperar durante todo o período das festas a Deméter, que duraram três dias. Só depois de que as festas acabaram e o filósofo deixou de aspirar as agradáveis emanações dos pães quentes, a morte conseguiu arrebatá-lo da Terra para o mistério dos átomos de fogo, mais ou menos em 361 a.C.
Laércio acrescenta: "[...] terminou a sua vida sem nenhuma dor...". Belo final para uma vida de filósofo, que descobrira o segredo da felicidade na paz interior! Conta-se ainda que o seu enterro foi custeado pelo povo.
No epigrama que Diógenes Laércio fez para o filósofo figuram os versos referentes à hospedagem da morte:
Ele abrigou a morte em sua morada,
E apenas com os vapores do pão quente
Três dias a manteve em hospedagem.
Texto publicado originalmente no livro OS FILÓSOFOS, Ed. Paidéia.