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(500 ou 480 a.C. — Aprox. 410 a.C.)

PROTÁGORAS

(500 ou 480 a.C. — Aprox. 410 a.C.)

 

A seriedade absoluta é tão prejudicial ao espírito quanto a absoluta leviandade. A carranca embrutece o espírito e a facécia o dispersa. Quando os homens se convencem de que possuem a verdade e se encastelam em seus dogmas, a civilização se fecha por milênios entre as muralhas da China. É então necessário que alguém se lembre de sorrir das atitudes solenes, de pôr em dúvida as verdades feitas. Foi isso o que fizeram os sofistas, no mais belo século da Grécia, quando os sábios helenos ameaçavam o mundo com a carranca de suas decisões solenes. Mas como não é fácil levantar a flama do sorriso em meio às densas trevas do carrancisco, foi necessário que os sofistas viessem de fora, trazendo para o interior das muralhas culturais de Atenas as suas luzes de pirilampo.

De certa maneira, o episódio dos sofistas é a insídia de Troia em revanche. E um professor de Abdera, na Trácia, foi o herói principal dessa façanha, em que vemos uma nova Helena, desta vez encarnada na sabedoria grega, provocar uma epopeia espiritual, em que as façanhas da Ilíada e da Odisséia se repetirão na cartografia do pensamento. Não é por acaso que esse herói, Protágoras, constituiu-se em uma espécie de laço entre Leucipo e Demócrito, no plano das gerações, segundo assinala Windelband. Um herói da fibra de Protágoras só poderia surgir de uma geração de filósofos, no clima de inquietação espiritual que caracterizou o atomismo grego.

Os sofistas caíram no extremo oposto da atitude assumida pelos pensadores gregos tradicionais. Como em todas as revoluções, exageraram. E esses exageros deram pasto à ira que haviam provocado, de tal maneira, que ainda hoje não nos sentimos muito dispostos a reconhecer o valor substancial de sua atitude em face da cultura. Protágoras, porém, foi o que soube manter mais alto o seu prestígio. Não caiu na facécia comum, na futilidade oratória, nessa outra forma de morte do espírito, oposta à estagnação, mas tão fatal quanto ela, que é a dispersão. Por isso mesmo, parece-nos que ninguém encarna melhor a era dos sofistas, do que esse possível discípulo de Leucipo e Demócrito, sobre o qual Platão escreveu um de seus pequenos diálogos, eivado de sátira, o Protágoras, mas cuja doutrina teve também de apresentar um diálogo mais sério, o Teeteto. E não deixa de ser valioso que esses dois diálogos figurem na lista dos oito de Platão cuja autenticidade nunca foi posta em dúvida, pelo menos de maneira séria.

Protágoras nasceu em Abdera, entre 500 e 480 a.C., bem depois de Leucipo e vinte anos mais ou menos antes de Demócrito. Este, segundo dizem, ria continuamente da loucura humana. Basta essa referência para vermos que o espírito faceto imperava em Abdera, predispondo os homens a uma nova atitude em face da vida. Protágoras encarnou essa atitude ao se fazer “professor de ciência”, mas de uma ciência que não se fechava na pretensão épica de explicar o universo, destinando-se antes a ensinar aos homens a viverem. Para começar, essa ciência devia dar ao próprio Protágoras um meio de vida. Ele a transformou, pois, na sua profissão, escandalizando os que ensinavam por amor à sabedoria, uma vez que preferia reunir o útil ao agradável.

A palavra sofista só adquiriu o sentido pejorativo, que hoje tem, depois de Sócrates. Sua significação primitiva era a de “homem de ciência”, ou “professor de ciência”, como dizia Protágoras. Os sofistas se opõem, assim, aos filósofos, na História da filosofia. Se estes, como vimos com Pitágoras, são os amantes da sabedoria, que desejam privar das delícias da amada, aqueles, como vemos com Protágoras, são, em termos atuais, os empresários da sabedoria, os propagandistas de suas virtudes e excelências, os exibidores de suas formas e seus encantos. A hetaira grega se transforma, nas mãos dos sofistas, na “estrela” de teatro ou de cinema dos nossos dias. Havia, portanto, razões de sobra na ira desencadeada contra os sofistas em todo o mundo cultural grego.

Mas é evidente que, por outro lado, os sofistas respondiam às exigências de uma nova fase do desenvolvimento da Grécia: a democrática. Bertrand Russell chega mesmo a admitir que a democracia ateniense, apesar de suas limitações e suas bases escravagistas, era, "sob certos aspectos, mais democrática do que os sistemas modernos". Numa época em que falamos tanto de democracia, em que sentimos que a harmonia social só pode resultar de um verdadeiro processo democrático, não deixa de ser desolador que um filósofo moderno possa afirmar tal coisa. Pois era nesse mundo democrático, em que pesem as suas antinomias insanáveis, que os sofistas realizavam a sua obra de democratização da cultura.

 

 

O CAÇADOR DE HOMENS

 

 

Não é possível democratizar a cultura sem primeiro realizar uma verdadeira caça aos homens. Porque os homens incultos são como animais selvagens, que fogem à domesticação. Mas se os animais selvagens podem ser caçados com armadilhas e engodos, também os homens incultos o podem. E a democracia ateniense era o campo mais propício para a colocação dessas armadilhas. De um lado, ela oferecia aos jovens a possibilidade de galgarem elevadas posições na vida pública; de outro, oferecia oportunidade aos cidadãos para se defenderem nas questões judiciárias, onde o próprio acusado podia enfrentar os seus adversários, dele mesmo dependendo a sua vitória ou derrota.

 

Os sofistas agiam como bons caçadores. Suas armadilhas eram a retórica e a preparação científica. O regime democrático, como acentua Windelband, implicava a participação de todos os cidadãos na vida pública. Mas essa participação não poderia ocorrer se o cidadão não estivesse em condições de exercê-la. E como o Estado não fornecia os meios de preparação, os sofistas apareciam na democracia grega como elementos necessários ao seu próprio desenvolvimento. Os jovens recorriam a eles para conseguirem os meios de se projetarem na vida pública. Ao fazerem isso, caíam na armadilha da cultura, mordiam a isca, e se tivessem gosto pelas coisas do pensamento, fugiriam sempre e cada vez mais da condição de ignorância.

É neste sentido que Protágoras aparece como um caçador de homens. Não apenas como um caçador de jovens ricos ou um comerciante da cultura, segundo as referências satíricas de Platão em O Sofista, mas como uma inteligência que procura atrair outras para o plano do conhecimento. Não se pode dizer que essa caça fosse realizada por simples prazer, ou por simples amor à cultura, pois os sofistas cobravam pelas suas lições. Mas se Platão se escandaliza com isso, e os aristocratas gregos acusam os sofistas de mercenários, a verdade é que assumiam em face do problema tão somente uma atitude de classe. Cabe aqui a lembrança de um trecho de Bertrand Russell: "Platão possuía meios próprios de subsistência, o que o tornava incapaz, ao que parece, de compreender as necessidades daqueles que não gozavam da mesma sorte. É curioso que os professores modernos, que não veem motivos para recusar salários, repitam com tanta frequência os juízos de Platão a respeito".

Uma conclusão do Estrangeiro, personagem do diálogo O Sofista, mostra-nos a posição difícil em que Protágoras é colocado no pensamento platônico. O Estrangeiro, como explica Teodoro, "[…] é natural de Eleia, e realmente um filósofo, que pertence ao círculo de Parmênides e Zenão". Esse homem, impregnado do pensamento eleático, chega à seguinte conclusão sobre a atuação dos sofistas:

 

ESTRANGEIRO: Recordando, pois, o nosso raciocínio, parece-me, Teeteto, que na arte da apropriação, na caça, na caça aos seres vivos, às presas da terra firme, aos animais domésticos, ao homem como indivíduo, na caça interesseira, em que se recebe dinheiro a pretexto de ensinar, na caça em que se perseguem os jovens ricos e de alta sociedade, encontramos o que devemos chamar, como conclusão de nosso próprio raciocínio, de Sofística.

 

Logo mais, o Estrangeiro mostra que os sofistas são também comerciantes de ciência, homens que vendem ciência de cidade em cidade, através da importação. A sofística é simplesmente um comércio. O Estrangeiro pergunta: “Então, aquisição por troca, por troca comercial, seja ela uma venda de segunda mão ou venda pelo próprio produtor, não importa, desde que este comércio se refira aos ensinos de que falamos, será sempre, a teu ver, a Sofística?”

E Teeteto responde: “Necessariamente, é uma consequência que se impõe”.

Vemos nessas passagens todo o ódio das classes tradicionais para com os sofistas, apontados como mercenários da cultura. Não obstante, a influência desses homens foi tão grande, na modificação do pensamento grego, em sua passagem da fase das preocupações físicas de ordem cósmica para as preocupações antropológicas e morais, do cosmos em sentido universal para o cosmos humano, como acentua Werner Jaeger, que o seu comércio assegurou-lhes um lugar proeminente na História da filosofia. Afirma-se que os sofistas não foram filósofos, mas educadores, e que o seu lugar é antes na História da Educação. Protágoras, porém, desmente essa tese. Sua vida e sua obra, no que, embora pouco, podemos conhecer de ambas, revelam que o seu lugar, como o de Sócrates, Platão e Aristóteles, tanto pertence a uma como a outra.

 

O MERCADOR E A SABEDORIA

 

Do pouco que sabemos sobre a vida de Protágoras, o certo é que foi um dos primeiros mercadores da sabedoria. "Tendo previsto de maneira exata as necessidades da época", como escreve Windelband, percorreu numerosas cidades gregas, ensinando, e sempre cercado pela admiração popular. Esteve em Atenas diversas vezes, mas Russell entende que só a visitou duas vezes, e da segunda, antes de 432 a. C., serviu de motivo para o diálogo de Platão que traz o seu nome.

Diógenes Laércio diz que Protágoras era filho de Ártemon, mas acrescenta que: "[…] segundo Apolodoro, e Dínon, em sua História da Pérsia, era filho de Menandro". Diógenes lembra ainda que Êupolis não considerava Protágoras como natural de Abdera, mas de Teos. Esta última dúvida está hoje desfeita. Sabemos que era natural de Abdera, e que, como diz Émile Bréhier, "[…] escandalizou os atenienses por sua indiferença em matéria de Religião". Em suas andanças, caçando homens para a sabedoria, ou vendendo esta a grosso e a varejo, não somente ensinou, mas também contribuiu para a organização das cidades. É o que nos mostra o episódio de Turi, para a qual, como Parmênides fizera para Eleia, elaborou um código ou uma constituição.

O mercador de sabedoria, como vemos, era também legislador. Diógenes Laércio sustenta que ele foi discípulo de Demócrito e que o chamavam de Sabedoria. Se isto é verdade – e Diógenes evoca o testemunho de Favorino, em suas Histórias Várias –, então o mercador não vendia em segunda mão, mas pertencia àquela classe de produtores que colocam diretamente os seus produtos no mercado, segundo a sátira platônica.

É bem vasta era a produção de Protágoras, se admitirmos como certas as informações de Diógenes Laércio a esse respeito. Em primeiro lugar, temos esta notícia preciosa: “Foi o primeiro a dizer que em todas as coisas há duas razões contrárias entre si, e disso se servia em suas perguntas, sendo o primeiro a praticá-lo". Esta informação é bastante comprometedora para o orgulho aristocrático de Platão, pois confere ao mercenário Protágoras a prioridade da maiêutica socrática, e consequentemente da dialética platônica.

Diógenes afirma que Protágoras "[…] filosofou pelo espaço de quarenta anos", e Zeller declara que ele passou a idade madura percorrendo cidades e ensinando, a troco de pagamento em dinheiro. "Foi o primeiro que recebeu cem minas de salário", informa Diógenes, acrescentando várias coisas em que o mercador de sabedoria teria tido a primazia, inclusive esta: "Foi o primeiro que dividiu o tempo em partes e explicou as virtudes das estações". Na lista das primazias de Protágoras, insiste Diógenes: "Também foi o primeiro que empregou o estilo socrático de falar, e o primeiro que usou o argumento de Antístenes, com o qual se pretende demonstrar que não se pode contradizer".

Mas não é somente Platão quem sai comprometido da informações de Diógenes Laércio sobre as atividades culturais de Protágoras. Aristóteles também perde a primazia de sua obra mais importante, ou seja, daquela que parece haver construído sozinho e para todo o sempre: a Lógica. Foi o primeiro a tratar da oração em suas várias partes não apenas do ponto de vista gramatical, como o fizera Hípias, mas em sentido lógico. Windelband confirma a informação de Diógenes, acentuando que "Protágoras chamou a atenção para a essência da oposição contraditória e foi o primeiro que ensinou um método especial para a discussão ouo torneio oratório". Acrescenta de maneira incisiva: "É evidente que aqui nasceu a Lógica Formal, como uma espécie de arte da disputa, demonstração e refutação, e desgraçadamente nada sabemos quanto ao grau de adiantamento a que chegaram os sofistas nessa arte".

Diante de todas essas afirmações, vemos que Protágoras vendia o que possuía, e muitas vezes o que possuía em primeira mão, como excelente produtor. Fazem-lhe tremendas acusações: teria reduzido a dialética à erística e causado profundos prejuízos à prática forense, com seus deletérios sofismas, seus jogos antilógicos. Faltava-lhe o senso moral dos atenienses, que a história nem sempre comprova, e que na vida de Protágoras está bastante demonstrado. Teria sido uma espécie de demônio ambulante, a espalhar por tudo o ácido corrosivo das suas dúvidas. Mas todas essas acusações provêm dos seus adversários.

 

O INVENTOR E O LEGISLADOR

 

Gomperz faz justiça a Protágoras com estas palavras: "Dispunha de tão múltiplos talentos, que podia, com a mesma facilidade, inventar um aparelho para uso dos carregadores ou atuar como legislador". E assim era, de fato, como já vimos nas referências de Diógenes Laércio. O episódio de Turi, a que aludimos atrás, confirma o juízo de Gomperz. Encontramos ali, na cidade reconstruída, o professor de Abdera em função legislativa, por incumbência de Péricles.

Admite Gomperz que a tarefa foi confiada ao sofista na primavera de 443 a.C., quando os atenienses haviam reconstruído Turi, nas proximidades das ruínas de Síbaris, numa radiosa e fecunda planície. Tudo anunciava o esplendor de uma nova era. A cidade reconstruída atraiu para as suas ruas e praças numerosas personalidades ilustres. Era um símbolo urbanístico e arquitetônico do mais fino espírito helênico, ao mesmo tempo que da força criadora dos gregos e até mesmo de sua principal característica espiritual: o racionalismo.

Para compreendermos isso, precisamos recorrer às informações de Gomperz, com base em Aristóteles. O plano urbanístico de Turi havia sido confiado a Hipódamo, de Mileto, um "[…] homem original, que ostentou sua originalidade até mesmo nos pormenores do vestuário e do penteado".

Hipódamo era um reformista, e recomendava o traçado das ruas em linha reta, cruzadas em ângulos retos. Suas cidades deviam ser, portanto, verdadeiros reflexos do espírito racional dos gregos, estruturadas com lógica regularidade, em traçados límpidos e severos, sem os meandros e obscuridades das antigas povoações surgidas ao acaso. O espírito ático se afirmava em Turi reconstruída, em toda a sua plenitude.

Gomperz nos oferece uma visualização provável da passagem de Protágoras por Turi. Sob os pórticos magníficos, mas ao mesmo tempo austeros, de linhas discretas, das novas construções, Protágoras, o legislador — no apogeu do êxito e da sua capacidade intelectual — podia entreter-se em conversação com Heródoto e Empédocles, o primeiro, chamado túrio por Aristóteles, e o segundo, citado por Apolodoro como tendo visitado a cidade logo após a sua fundação. Mas ao lado do historiador e do filósofo, quantas figuras do mais alto relevo na vida política, social e intelectual de Atenas, de Esparta e outras cidades gregas não teriam acorrido para lá, participar do significativo acontecimento?

Esta suposição é corroborada pela afirmação de Gomperz, de que o rápido desenvolvimento de Turi parecia pressagiar uma era de concórdia helênica, pois a população se constituía de elementos "[…] de todas as estirpes", e a divisão dos cidadãos em dez categorias, segundo a procedência, tinha "[…] um sentido francamente pan-helênico". Entretanto, os fados haviam determinado o contrário. O belo prenúncio de Turi reconstruída se desfaria dez anos mais tarde, com a guerra entre Atenas e Esparta e com a devastação da peste na primeira dessas cidades. Protágoras presenciou essa amarga reviravolta, assistindo em Atenas à morte cruel dos jovens filhos de Péricles, aniquilados em apenas oito dias pela terrível moléstia.

 

CONDENAÇÃO, FUGA E MORTE

 

Ao contemplar toda essa derrocada, Protágoras bem devia lembrar-se do eterno fluir das coisas, que desde cedo aprendera na filosofia de Heráclito. Tudo passa, na voragem impiedosa do tempo. Turi, que renascera pela força do gênio grego no esplendor do século de Péricles, seria destruída e saqueada mais tarde por Aníbal, e parte de sua população, escravizada. Péricles, depois de haver dado a Atenas o máximo poder e esplendor, morreria de peste e em desprestígio. Empédocles, que ele vira passeando sob os pórticos severos de Turi, se precipitaria na cratera do Etna, para que ninguém o visse transformado em cadáver, e o vulcão devolveria, ironicamente, uma de suas sandálias. Por fim, o próprio Protágoras, já velho e cansado, romperia a cautela habitual para clamar em público contra os deuses.

Foi assim nesse final de tragédia que Protágoras se viu envolvido numa acusação de ateísmo. E o grande sofista, pela primeira vez, não acreditou no poder extraordinário da sua oratória. Ele, que havia confundido os gregos, subvertido as ideias, desprestigiado os dogmas, ensinado os mais inábeis a se defenderem com extrema habilidade, compreendeu que chegara, no desenrolar da tragédia, o momento crucial da catástrofe. E por isso mesmo, integrado já no seu papel de ator, não mais personagem real, preferiu fugir.

Mais tarde, historiadores e intérpretes apressados da história iriam compará-lo a Sócrates para diminuí-lo. Lembrariam a coragem de Sócrates na velhice, a sua irônica intrepidez, a sua recusa a fugir. Mas quem pode acusar a Protágoras pela sua decisão, sem conhecer os pormenores circunstanciais que a determinaram? O confronto dos simples exemplos, em suas linhas gerais, nada exprime quando não estamos em condições de confrontar as situações, tanto em seus aspectos sociais quanto psicológicos, e estes, principalmente.

Protágoras escrevera um livro herético, Sobre os Deuses, em que punha em dúvida a existência destes, embora alegando de maneira sensata as suas razões:

 

Quanto aos deuses, não posso ter a certeza de que existem, nem a de que não existem, nem posso saber que aspecto devem ter, pois há muitos motivos que me impedem de ter um conhecimento seguro a respeito, e entre eles a obscuridade do tema e da brevidade da vida humana.

 

Diógenes Laércio diz que o próprio Protágoras teria lido o livro em Atenas, na casa de Eurípides, dando-o à publicidade, segundo o costume da época. Formulada a seguir a acusação, os exemplares foram sequestrados e queimados publicamente, precedendo a condenação do autor nessa eterna demonstração de intolerância dos espíritos mesquinhos e dos interesses criados que vemos sempre repontar ao largo da história. Mas o próprio Diógenes informa que, segundo outras fontes, a leitura do livro não teria sido feita em Atenas, mas em Megáclides, ou ainda, segundo outros, Protágoras o teria feito ler no Liceu, por seu discípulo Acágoras, filho de Teodoro. Um dos quatrocentos que governavam Atenas, Polizelo tinha um filho por nome Pitodoro, que por certo presenciou o ato herético e resolveu denunciar o sofista. Mas ainda aqui subsistem as dúvidas, que são tantas, nessa biografia misteriosa, e Aristóteles informa que o acusador de Protágoras foi Evatlo.

Se a informação de Aristóteles, citada por Diógenes, for exata, podemos estar diante de um caso de pérfida vingança. Porque uma das anedotas referentes à atuação profissional de Protágoras tem como centro exatamente esse jovem, que teria sido discípulo do sofista. O próprio Diógenes conta essa história, que em vários historiadores aparece de maneira um tanto confusa. A versão de Diógenes é muito clara e interessante. Vejamo-la em sua forma textual:

Dizem que, tendo reclamado a paga ao seu discípulo Evatlo, como este respondesse que ainda não havia ganho causa alguma, retrucou: "Pois se eu agora a ganhar, tenho de receber, porque ganhei, e se tu venceres, porque venceste”.

A anedota se esclarece ao sabermos que Protágoras havia ensinado Evatlo com esta condição: metade do pagamento à vista, e a outra metade quando o discípulo ganhasse uma questão na justiça. Ora, como Protágoras resolvera cobrar o discípulo judicialmente, este ficaria num legítimo dilema, pois teria de pagar, quer ganhasse, quer perdesse.

Seja, porém, verdadeira ou não a informação de Aristóteles, o que parece certo é que Protágoras foi acusado de impiedade e condenado pelo Governo dos Quatrocentos. Diante disso, fugiu para a Sicília, segundo Filócoro. Em meio do mar, porém, a nave afundou, e o sofista morreu – de acordo com uns, aos noventa anos de idade, e segundo Apolodoro, com apenas setenta anos. Nem sequer a respeito da sua idade podemos ter certeza. Mas, em compensação, Diógenes Laércio oferece-nos este epigrama, que compôs para ele:

 

Morreste, ó Protágoras, já velho,

Em viagem, ausentando-te de Atenas.

Da terra de Cécrope escavaste.

E também conseguiste fugir

Da cidade de Palas.

Mas fugir de Plutão já não pudeste.

A ingenuidade da composição, que lembra os nossos epigramatistas caipiras justifica o que diz do autor o Sr. José Ortiz y Sanz, que traduziu do grego o livro de Laércio para a coleção clássica da Editora El Ateneo, de Buenos Aires: não é muito de se lamentar a perda do seu livro de epigramas. Não obstante, o valor testemunhal desse epigrama não pode ser negligenciado, embora a vida de Laércio seja tão obscura quanto a do próprio Protágoras.

 

CETICISMO RELATIVISTA

 

Não podemos ter nenhuma certeza quanto à legitimidade da doutrina de Protágoras que chegou até nós. Basta dizer que a principal fonte de sua gnosiologia é o Teeteto, de Platão, para compreendermos as nossas dificuldades. Platão, como diz Russell, ao tratar dos sofistas, "[…] deu-se à tarefa de caricaturá-los e envilecê-los". Talvez não o fizesse conscientemente, mas levado pelas condições da época, que o colocavam em situação contrária à daqueles "mercadores da sabedoria". Apesar disso, conseguimos saber alguma coisa sobre o que Protágoras pensava e ensinava, e essa alguma coisa basta para espantar-nos. Como vimos nas referências de Diógenes Laércio, o grande sofista foi "o primeiro" em muitas coisas, antecedeu aos seus próprios adversários em diversos terrenos de especulação, e durante quarenta anos ensinou os gregos a duvidarem de suas certezas tradicionais e do ensino dogmático de seus filósofos. Mas nem por isso deixou de aproveitar, de seus antecessores, as verdades prováveis.

Protágoras firmava-se numa posição cético-relativista, que levou alguns estudiosos modernos a considerá-lo como "o pai do relativismo". Grote, embora contestado por Natorp, chegou mesmo a admiti-lo como "o fundador do Positivismo", em detrimento da glória de Comte. Outros o consideraram predecessor de Kant, e portanto "criador do Criticismo". Outros, ainda, viram nele um sensualista que antecedeu os empiristas ingleses, e não raro o vemos citado como "o pai da ilustração grega", marcando na história do pensamento, com antecedência de dois milênios, o século europeu das luzes. Schiller, um dos fundadores do pragmatismo, como informa Russell, dizia-se discípulo de Protágoras, e assim o temos também como antecessor de William James.

Depois disso, não compreendemos facilmente as reservas que ainda hoje se fazem de Protágoras, a semi-obscuridade em que permanece a sua figura extraordinária, eclipsada por outras que tanto lhe devem. Windelband, que não trata os sofistas com muito respeito, declara que não devemos nos esquecer da "seriedade científica" com que Protágoras expôs a sua gnosiologia. De fato, partindo da doutrina de Heráclito de Éfeso, esse obscuro filósofo do eterno fluir de todas as coisas, Protágoras procurava mostrar a impossibilidade do conhecimento verídico ou legítimo, ao mesmo tempo em que acentuava o caráter fatalmente relativista do conhecimento. Daí a sua grande frase, que todos os tratados filosóficos repetem, ao se referirem ao problema do conhecimento: “O Homem é a medida de todas as coisas, do Ser das que são e do Não-Ser das que não são”.

O problema sartreano do Ser e do Nada aí já se encontra, antecipando o Existencialismo, embora num sentido diverso. Porque, para Protágoras, o Ser não é o l'en soi de Sartre, mas o le pour soi, esse dinamismo relativista da ação, em que o Ser, não sendo, ao mesmo tempo é. Aliás, o que mais aproxima Protágoras de Sartre é exatamente essa posição antinômica. Windelband a acentua muito bem nestas palavras, sem, entretanto, qualquer referência a Sartre: "Protágoras partia da teoria heraclitiana, porém, mais ainda que o efésio, acentuava a situação correlativa, em virtude da qual toda coisa singular, mais do que existir, transforma-se a todo instante por suas relações com as demais". Em Sartre, vemos o Ser em si negar-se a si mesmo para aparecer na ação e entrar em relação com os outros. Em Protágoras, vemos o Ser negado de antemão, desprovido de qualquer existência como entidade absoluta, para somente aparecer no processo das relações, como produto por assim dizer eventual e relativo, que tão pronto aparece como desaparece, nas transformações sucessivas e infindáveis das coisas.

No pensamento de Protágoras, tudo é movimento. As coisas são produtos do movimento. Mas este se processa dentro de uma lei dialética, que antecipa Hegel e, consequentemente, Marx e Engels. É necessário o conflito de dois movimentos correlativos e de direção contrária, um chamado ativo,e outro, passivo, para que as coisas surjam. O mundo heraclitiano adquire assim uma estrutura funcional e um vigor extraordinário, apresentando-nos a Natureza como uma perpétua ebulição criadora. O vitalismo bergsoniano não estaria presente, em forma larvar, nessa concepção do mundo? O perpétuo fluir de Heráclito, transformado no correlativismo de Protágoras, não traria em si a idéia da força criadora, a gerar as coisas e as suas qualidades? São perguntas possíveis, diante do pouco que sabemos e principalmente do muito que nos falta a respeito do pensamento do grande sofista.

Mas da mesma forma por que as coisas surgem do conflito de dois movimentos, as qualidades das coisas são produzidas em nossos sentidos. Protágoras formula assim a sua teoria do conhecimento. E por ela é que vamos ver de que maneira o homem se faz a medida de todas as coisas. Os sentidos humanos são tocados por movimentos que partem dos objetos exteriores, mas reagem a esses movimentos. Com isto se produz no órgão sensorial uma percepção da coisa, ou a imagem de percepção, como diz Windelband, "[…] e ao mesmo tempo, na coisa, a propriedade correspondente a esta última". Disso resulta que a percepção é pessoal, cada homem percebendo as coisas a seu modo, e não como elas realmente são.

Estamos assim em pleno terreno kantiano. O conhecimento é um processo puramente relativo e periférico. Não atinge a essência das coisas. Não vai além do fenômeno. O númeno de Kant nos é interdito. Julián Marías lembra uma referência de Sexto Empírico, em Adversus Mathematicus, a esta possível definição de Protágoras: A verdade é uma relação. Se estivermos em face de uma frase realmente protagórica, vemos que o grande sofista antecipou muitas pretensas novidades atuais.

Mas Wilhelm Dilthey analisa o relativismo protagórico no sentido da objetividade para mostrar que ele não negava a realidade objetiva. "A doçura […]”, diz Dilthey, “[…] se suprimirmos o sujeito que a prova, já não é nada; só existe em relação com a sensação; porém, a sua teoria da percepção mostra logo que não desapareceu, com essa sensação de doce, o objeto mesmo". Por isso foi que tratamos acima da teoria do objeto antes da teoria da percepção. Este sempre existe no exterior, afetando os sentidos humanos. E como acentua Marías, se não fosse assim, não existiria uma teoria da percepção, pois não haveria o que perceber, a menos que Protágoras houvesse também antecipado Berkeley, o que não era possível diante da sua descrença nos deuses.

A teoria do conhecimento formulada pelo grande sofista leva-nos a uma situação de impasse muito semelhante à do criticismo kantiano. Se Kant fechou os homens nas muralhas da aparência sensível, permitindo-lhes, entretanto, a compreensão no sensível através das categorias da razão, Protágoras parece transformar cada homem numa ilha, num ser isolado, espécie de preso incomunicável dentro do universo em mutação contínua. Neste ponto, mais uma vez, encontramos uma conexão com o pensamento sartreano e uma justificação do desespero kierkgaardiano.

Cada coisa aparece a cada indivíduo de uma forma própria, especial, e por isso mesmo incomunicável. Vemos assim em que consiste o cetícismo relativista de Protágoras. Primeiro, não sabemos se o que conhecemos "realmente é"; depois, não sabemos como os outros conhecem o que conhecemos; e depois, ainda, não podemos comunicar aos outros o que conhecemos pela forma especial de a conhecermos. Tudo é incerto e relativo, mas tudo existe e tem importância na medida da apreensão individual, no âmbito do universo humano.

 

FILOSOFIA E SOFÍSTICA

 

Já fizemos no início a distinção entre filosofia e sofística. Não obstante, verificamos depois que Protágoras era também um filósofo, e como tal um pensador original, capaz de produzir as mercadorias que vendia e capaz de ser em muitas coisas "o primeiro", como o demonstrou Diógenes Laércio. Como explicar-se, então, a distinção? Expliquemos antes a confusão. E para isso nos serviremos de uma expressão feliz de Julián Marías: "[…] na Sofística pulsava uma interpretação da realidade". Já vimos que essa interpretação era indispensável à própria existência da prática sofista. Primeiro conhecer, para depois agir, como afirmaria Kant.

Mas se na sofística pulsava a filosofia, por que a distinção? Porque, como já mostramos no início, temos na primeira o amor à sabedoria, e na segunda, a utilização do saber. Entre filosofia e sofística existe a mesma distinção que entre teoria e prática. Mas assim como não podemos separar uma coisa da outra sem prejudicar a plenitude da ação, da mesma maneira não podemos separar a filosofia da sofística sem prejudicar a plenitude do saber. Julián Marías acentua que os sofistas inverteram os termos da filosofia, em atenção a uma exigência social. Mas não foi isso também, e pelo mesmo motivo, o que Marx fez com a dialética hegeliana, e num sentido mais amplo, com a própria filosofia? E antes de Marx, já Augusto Comte não havia procedido da mesma maneira?

Aristóteles chamou a sofística de "sabedoria aparente, que não o é". Mas sabemos que Aristóteles, como Platão, tinha uma posição intelectual e social decisivamente oposta à de Protágoras, Górgias, Hípias e os demais sofistas. O argumento aristotélico é ainda hoje usado pelos que combatem o marxismo, negando-lhe caráter filosófico. É a eterna luta dos homens, no plano relativo de suas posições intelectuais e sociais. O relativismo protagórico em plena confirmação na realidade histórica, ao menos no que toca às divergências humanas.

A sofística foi sobretudo acusada de levar o homem ao negativismo e à irresponsabilidade. Não se faz, hoje, a mesma acusação ao pragmatismo? Windelband, endossando essas acusações, chega a dizer que o ceticismo protagórico acarretaria a dissolução da ciência. Tudo isso nos parece, quando analisamos as consequências da atuação dos sofistas, demasiado exagerado. A sofística representou um momento necessário na história do pensamento grego, tão necessário quanto o do Positivismo no pensamento moderno, em que pesem todas as objurgatórias que formulam a este. Não podemos encarar os problemas do pensamento puxando a viseira de nossos preconceitos sobre os olhos. Descartes já nos ensinava a evitar a prevenção e a precipitação.

É curioso notarmos, por exemplo, na sofística, o desenvolvimento das escolas dos fisiólogos. Bastaria isso para mostrar a irredutível ligação da sofística à filosofia, tanto no plano histórico, quanto no conceitual. Se Protágoras, discípulo de Demócrito, desenvolvia suas teses apoiado ao mesmo tempo nos atomistas e no pensamento heraclitiano, ao seu lado encontramos Górgias, de Leontino, que se alimentava do pensamento eleático. Para Protágoras, o Ser não existia como tal, ou seja, como ente absoluto, mas como entidade relativa. Para Górgias, o que existe é o Ser, na forma eleática de concepção. Mas, por curioso que possa parecer, essa própria existência se converte na negação do Ser. Não nos admiremos disso: em L´Être et le Néant, Sartre faz o mesmo jogo, como já vimos rapidamente, alguns períodos atrás.

Górgias chegou a escrever um livro intitulado Sobre o Não-Ser ou Sobre a Natureza. Nesse livro, expunha a sua curiosa doutrina, que se fundamentava em três princípios essenciais: 1.°) Nada é, pois bem, é o Não-ser, o Ser, ou ambos; 2.°) Se algo é, não será cognoscível, pois o que é, e o pensamento, são distintos; 3.°) Se houvesse conhecimento, não seria comunicável, pois a comunicação só é possível por meio de sinais, que são diferentes da coisa, e não temos nenhuma garantia de que todos os indivíduos os interpretam da mesma maneira.

Windelband demonstra o absurdo desses princípios, que contrariam as leis da Lógica Formal. Entretanto, os princípios de Górgias nos teriam chegado como ele os formulou? E se os formulou assim, não o teria feito com a intenção mesmo de desenvolver com eles um daqueles jogos dialéticos tão comuns aos sofistas? É interessante que o próprio Windelband reconhece essas dificuldades, assinalando textualmente: "É possível [...] que os sofistas tenham a desvantagem de só estarmos informados a seu respeito pelos seus adversários".

 

COMBATE À TRADIÇÃO

 

Protágoras, em certa medida, assemelha-se a Descartes nas cautelas que toma para não desencadear reações perigosas no meio ateniense. Assim como Descartes agia sempre de maneira cautelosa, embora minando as bases da estrutura social e cultural da sua época, Protágoras usa de evasivas, como no caso dos deuses, que prefere negar através da dúvida e não de uma negativa direta. Mas também como Descartes, prossegue em sua luta, minando o mundo de certezas tradicionais em que viviam os gregos. Se a Sofistica é uma revolução no plano da filosofia, também o é no da Política, da Religião, dos costumes. E Protágoras aparece na história como o general de uma vasta batalha contra a tradição helênica.

Apesar da inquietação que, desde o início, caracterizou a civilização grega, dando-lhe o dinamismo que a tornou a fonte mais importante e fecunda do fenômeno ocidental ainda no século V a.C., prevalecia o respeito pelas regra morais, políticas e religiosas que provinham da época dos Sete Sábios, ou seja, dos séculos VII e VI a.C. Entretanto, a reflexão ética que florescera naqueles séculos renascia no século V, em meio a novas condições econômicas, sociais e políticas, portanto, de forma diferente. Atenas prosperava sob a democracia imperialista de Pendes, como a maior potência naval da época. O comércio intensificou-se, as riquezas aumentaram rapidamente, o luxo e o ócio cresceram, as artes floresciam e a cultura se desenvolvia. Basta lembrar que a tragédia grega provém dessa época. A tradição foi abalada pelas influências estrangeiras; uma brecha se abriu, por assim dizer, na muralha tradicional, e por essa brecha entrou e se propagou rapidamente a sofística.

Não há dúvida de que os sofistas foram os principais agentes das transformações que daí por diante se verificaram. Protágoras não seguia o costume antigo de ensinar numa escola de tipo monástico. Essas confrarias religiosas, constituídas sob a influência órfica, e que mais tarde ainda continuarão florescendo, como vemos nos casos de Platão, Aristóteles, Epicuro e outros, influíam imediatamente sobre uma comunidade reduzida, selecionada e, por isso mesmo, aristocrática. Mas Protágoras e os demais sofistas iniciaram uma forma nova e mais dinâmica, de maior raio de influência. Infiltraram-se, assim, no meio do povo, discursando em praça pública para atrair discípulos, como autopropagandistas, a semearem idéias novas.

Bertrand Russell acentuou bem esse aspecto da sofística, lembrando duas características importantes do movimento: não estava ligado à tradição religiosa e não se sujeitava às regras morais. Era, pois, uma verdadeira revolução. Não é de admirar que os sofistas,assim revolucionários, tenham caído em desgraça quando a reação cultural se fez sentir, e praticamente tenham sido executados na história. Hoje, porém, já começamos a compreender melhor o papelque desempenharam, e uma figura como a de Protágorasvaiaos poucos sendo reabilitada, não obstante a falta de elementos para a reconstituição de sua vida e de sua obra.

Uma das posições mais curiosas dos sofistas nessa luta é a que tomaram como naturalistas, contra as regras, as normas, as leis convencionais e, portanto, contra o contexto social. Protágoras colocava o homem como juiz do universo. Concedia-lhe uma autonomia individual que se chocava com a social. E isso correspondia ao processo de desenvolvimento do individualismo na civilização grega. Hípias declarava que a lei muitas vezes violentava a Natureza. Windelband observa que, na medida em que essa tendência sofística se acentuou, dando prevalência ao direito natural sobre o positivo, e principalmente definindo a Natureza como natureza humana, tanto mais a lei convencional ou social aparece como "[…] um prejuízo e uma restrição ao homem natural". Que conclusões tirarmos deste fato, em confronto com o naturalismo de Rousseau? Mais uma vez o "mercador da sabedoria" aparece como precursor, ou atribuiremos tudo a uma simples coincidência histórica?

Não sabemos até onde o Protágoras de Platão coincide com o Protágoras histórico. Windelband lembra que a ideia de que o homem, por sua afinidade com os deuses, há de render culto a estes, deve pertencer apenas ao primeiro, pois a posição do segundo em face dos deuses já está bem esclarecida. Entretanto, Russell admite uma atitude pragmática de Protágoras, acentuando textualmente: "Embora não soubesse se os deuses existiam, estava convencido de que deviam ser adorados. Este ponto de vista é, sem dúvida, adequado ao homem cujo ceticismo teórico revela-se profundo e lógico".

Ao aceitar esse ponto de vista e entendendo que Protágoras se dirigia aos homens como eles eram, não como deviam ser, encontramos no diálogo de Platão uma referência que nos leva à curiosa analogia. Protágoras teria dito que "[…] os sentidos de justiça e disciplina eram os únicos dons comuns que os deuses haviam dado aos homens". Quem não se lembra do que diz Descartes, no princípio do Discurso Sobre o Método, a propósito do bom senso?

Como se vê, quanto mais penetramos no problema protagórico, mais complexo, mais rico de sugestões, mais cheio de revelações ele nos parece. E com isso, mais urgente se torna um trabalho de investigação profunda e séria a respeito dessa extraordinária figura da sofística. O combate à tradição foi sobretudo uma luta contra o formalismo, a estagnação, a convenção, o artificial. E em meio a essa luta, Protágoras se destaca na sua inconfundível posição de pai da sofística, como o verdadeiro criador do Humanismo. Eis um título que Diógenes Laércio não lhe deu, e que nós também não pensávamos em lhe atribuir, mas que ele mesmo nos arrebata das mãos, à proporção em que tentamos reconstruir as linhas gerais do seu pensamento e da sua ação.

 

GÊNESE DO HUMANISMO

 

Quando pensamos no século de Péricles e nos lembramos de que os seus maiores homens, a começar do próprio estadista, não receberam mais do que uma educação elementar, incapaz de prepará-los para a missão que desempenharam em todos os setores da vida pública, temos de nos perguntar como isso pôde acontecer. Henri Marrou considera esse fato um espantoso exemplo de avanço da cultura sobre a educação, mas acentua a rapidez com que os gregos conseguiram reajustar as diferenças cronológicas, instituindo novos sistemas de ensino.

As primeiras escolas de nível superior a aparecer, lá pelos fins do século VI a.C., foram as de medicina, em Crotona e Cirene, precedendo as escolas clássicas de Cnido e Cós. Esse fato é particularmente significativo quando nos lembramos da tese de Werner Jaeger, segundo a qual a preocupação física da filosofia passou do cosmos para o homem através dos físicos, ou seja, dos médicos. As escolas de medicina representam, assim, organismos intermediários entre as escolas clássicas de filosofia, de tipo órfico, e as novas escolas que vão surgir com os sofistas. Através de Hipócrates, a ffilosofiailosofia grega passará da physis cósmica para a physis antropológica, do macrocosmo para o microcosmo, da generalidade universal para a particularidade humana. E assim, nascem ao mesmo tempo o humanismo pedagógico e o humanismo filosófico.

Curioso assinalar que entre as obras hipocráticas aparece uma de origem nitidamente sofística: Sobre a Arte, que praticamente quer dizer sobre a medicina. Gomperz, em fins do século passado, atribuiu essa obra a Protágoras, mas Windelband entende que se trata de uma tentativa sem repercussão. De qualquer maneira, a presença, na bibliografia hipocrática, de uma obra sofística, e a sua atribuição a Protágoras por um erudito da envergadura de Gomperz – sem repercussão, mas tampouco sem contestação – faz-nos pensar mais uma vez na amplitude da inteligência do pai da Sofistica. Mas o que nos interessa de perto, nesse episódio, é verificar de maneira concreta o papel intermediário da medicina na passagem da filosofia grega para o plano do Humanismo.

Cabe lembrarmos aqui uma indicação de Windelband vasada nos seguintes termos: "O que Cícero disse de Sócrates, que havia feito baixar a filosofia do céu para as cidades e as casas etc., pode dizer-se de toda a ilustração grega tanto dos sofistas quanto de Sócrates, até onde seja lícito falar-se de uma filosofia dos sofistas". Para nós, que já vimos a indubitável presença da filosofia em Protágoras, isso vale dizer que a referência de Cícero a Sócrates aplica-se primeiro a Protágoras. Há ainda, neste caso, uma precedência histórica indiscutível.

Entretanto, as escolas de filosofia não seguem a cronologia do processo cultural. Ainda aqui verificamos aquela diferença de tempo assinalada por Marrou. Em Mileto, a escola de Tales não é propriamente uma escola em sentido formal, mas apenas uma escola de pensamento, uma corrente filosófica nascente. Anaximandro e Anaxímenes redigem exposições de suas doutrinas, mas não fundam escolas propriamente ditas. Somente com Pitágoras é que, por fim, como diz Marrou, "[…] se concretiza essa ambição pedagógica numa instituição apropriada, a escola filosófica". Mas é apenas com os sofistas que irá surgir, ainda na expressão autorizada de Marrou "[…] a grande revolução pedagógica com a qual a educação helênica dá um passo decisivo para a sua maturidade".

Com os sofistas, portanto, e particularmente com Protágoras, é que vemos afinal consumar-se a transição da physis para a physis. A princípio, o problema central da sofística é a formação do político, do homem capaz de exercer seguramente as funções públicas na democracia. Mas, voltando ao que dissemos das armadilhas para a caça aos homens incultos, o processo da formação política se desenvolve num processo mais vasto de formação cultural. "Assim”, diz Marrou, “[…] a revolução pedagógica representada pela sofística aparece de inspiração menos política do que técnica: apoiados numa cultura amadurecida, os educadores empreendem a elaboração de uma técnica nova, um ensinamento mais completo, mais ambicioso e mais eficaz do que o conhecido antes deles".

“Educar os homens”, diz Protágoras. Não o histórico, mas o mítico, no diálogo de Platão – para definir a sua arte, Marrou, que evoca essa frase, presta reverente homenagem a Protágoras e aos sofistas, que inauguraram na Grécia e no mundo a profissão de professor. Nesse trecho do diálogo, o Protágoras mítico deve coincidir com o histórico, tal a justeza da frase platônica em relação à ação e ao pensamento protagórico. Educar, eis a missão dos sofistas, eis a função de Protágoras durante seus quarenta anos de excursão pelas cidades gregas.

A educação revela o seu poder e a sua eficácia. A juventude acorre ao chamado ou à oferta espetacular dos sofistas, que proclamam suas qualidades em praça pública, envoltos em mantos de púrpura ou nas vestes dos rapsodos. A educação toma o lugar da poesia. Fascina, arrebata a juventude, encaminha-a às grandes conquistas da vida prática. Não se trata mais de puras especulações no abstrato, no universal, mas de uma técnica de formação pessoal, de preparação cultural dos homens para a vida.

Protágoras começa ensinando que podemos sustentar qualquer tese por duas maneiras: a favor ou contra. A base de seu ensinamento é esse princípio: a antilogia. E Marrou declara, como Diógenes Laércio, que Protágoras "[…] foi o primeiro a ensinar" o processo da razão dupla. Esse processo se desenvolve pela erística, a arte da discussão, que os clássicos irão considerar como perversão da retórica. Mais do que da discussão propriamente dita, a erística é a arte da persuasão. Protágoras ensina como persuadir o adversário, como levá-lo pelos caminhos que se deseja, como torcer a opinião dos juízes nos processos forenses. E a erística, a malsinada erística, domina Atenas e se projeta no mundo e na história. Vai ser, como assinala Marrou, a herança grega das futuras disputas pelo mundo afora.

A imoralidade da erística está exatamente no seu poder de persuasão. Mas se o ensino era público e livre, não privado, não destinado a uma comunidade particular, trata-se apenas da difusão de uma técnica, cujo emprego no bom ou no mau sentido corre por conta de quem a aprender. E ao lado da erística, Protágoras ensina a retórica — ciência e técnica da palavra, capaz de dotar o aprendiz dos meios necessários a bem desempenhar suas funções sociais e políticas. Mas estas duas matérias constituem apenas a parte formal do ensino sofístico. Existem ainda outras disciplinas: a mnemotecnia, arte da memória, para que o orador possa gravar o essencial dos discursos a proferir; a polimatia ou erudição, que alguns autores misturam ou confundem com a mnemotecnia sem razão, pois trata-se de um verdadeiro processo de aprofundamento cultural, de instrução intensiva, abrangendo as quatro ciências da elaboração pitagórica: a aritmética, a geometria, a astronomia e a acústica ou música, e todas as demais ciências conhecidas. Claro que o discípulo tinha o direito de escolha, antecedente do que hoje chamamos "opção" em nossas faculdades de ensino superior, o direito de optar pelas matérias de seu interesse.

Protágoras aparece assim como um dos maiores revolucionários todos os tempos. Com ele surge, ou pelo menos nele se incorpora, o humanismo grego. Sócrates virá completar a sua obra. E por uma ironia do destino, a aversão de Sócrates pelos sofistas nada mais faz do que provar a tese dos movimentos correlatos e contrários, de Protágoras. Da dualidade sofistas versus Sócrates, do choque desses dois movimentos, surge o humanismo em sentido universal, que ultrapassará as fronteiras da Grécia para se projetar no mundo e oferecer bases a uma nova era.

Quando falamos de Sócrates, não podemos esquecer que antes dele existiu Protágoras.

 

Texto publicado originalmente no livro OS FILÓSOFOS, Ed. Paidéia.



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