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PITÁGORAS

(Aprox. 570  a.C.   — Aprox. 500 a .C.).

 

Na pequena Ilha de Samos, no Mar Egeu, verificou-se o milagre de uma encarnação divina, cerca de 570 anos antes de Cristo. Um deus baixou à Terra para trazer aos homens o facho da eterna luz, que clareia neste mundo obscuro a senda dos que desejam elevar-se ao céu. 

Não era ainda o Messias de Israel, mas devia ser um dos seus arautos, um longínquo precursor da sua vinda. Samos, a ilha inebriante, hoje famosa pelos seus vinhos moscatéis, pelo sol mediterrâneo que emoldura as suas ruínas, pela abundância de seus frutos, constituía então um dos estados mais florescentes do arquipélago. Suas montanhas cobertas de ciprestes rumorejantes  e verdes, exalando o suave odor das florestas de pinho, pareciam desdobrar sobre a ilha o manto protetor da deusa Hera, esposa de Zeus, para o milagre constante da fecundação.

Mas os deuses antigos não conheciam a virtude da fidelidade. Hera, amparando os esponsais no solo fecundo da ilha, poderia ser traída pelo seu divino esposo. O mesmo manto que protegia a produtividade dos rebanhos, dos olivais e dos vinhedos encobriria um dia a visita misteriosa do soberano olímpico a alguma jovem sâmia. Esse espírito democrático dos deuses, que não temiam descer à condição humana para gozar os prazeres efêmeros da terra, causaria grandes transtornos aos homens, se estes não reconhecessem a soberania divina e a ela não se submetessem com alegria e honra. É o que vamos ver no caso de Apolo, filho de Zeus, que leva as bênçãos da fecundidade olímpica ao lar de Mnesarcos.

Quem era esse Mnesarcos? Segundo os textos antigos que chegaram até nós, era um rico negociante de Samos. Diógenes Laércio o menciona como "gravador de anéis". Mas outros admitem que fosse o que hoje conhecemos por intermediário, comprando e vendendo mercadorias as mais diversas. François Milepierres entende que as duas coisas podiam conjugar-se na sua vida de comerciante e artista. De acordo com a lenda, Mnesarcos e sua mulher, Pártenes, eram descendentes do fundador de Samos, enquanto outros afirmam que eram tirrenos.  O que importa é que Pártenes era a mais bela mulher de Samos, e Apolo procurou-a, para gerar um deus entre os homens. Esse deus foi Pitágoras. Uma Pítia, sacerdotisa de Apolo, profetizou o seu nascimento. E Mnesarcos, orgulhoso da preferência olímpica para a sua esposa, fez construir em Samos um templo em honra ao deus.

Pitágoras cresceu, assim, no paraíso terrestre de Samos, na dupla qualidade de filho do homem e filho de deus. Mais tarde, um jovem galileu de Nazaré repetiria esse episódio mítico em proporções muito maiores, fazendo repercutir na história do mundo a estranha duplicidade da sua natureza. E decorridos dois milênios, apareceriam os que poriam em dúvida a existência de ambos. A lenda piedosa do nascimento divinal transferiria as duas pessoas históricas para o plano mitológico.  E muito se discutiria e se discutirá a respeito. Mas  os pitagóricos continuam  a crer no  seu deus, como os cristãos no Cordeiro de Deus. E um e outro se fazem tão presentes na Terra, como se aqui ainda estivessem em carne e osso.

Jesus reformou o judaísmo e trouxe aos homens uma nova mensagem de redenção.  Pitágoras reformou o orfismo e ofereceu aos homens um novo roteiro espiritual. Sua mensagem continua viva. Templos ainda se erguem em seu nome. Ali mesmo, em Curitiba, podemos encontrar o Templo das Musas, que revive a tradição pitagórica. Mas o homem-deus de Samos não se projetou tanto no terreno da religião quanto no campo de batalha da Filosofia. Embora nada conheçamos, com segurança, dos seus escritos, suas idéias continuam a brilhar como uma constelação doirada no céu do pensamento moderno. Muitos afirmam que ele nada escreveu, mas Diógenes Laércio o contesta, citando vários livros seus que desapareceram. E mesmo que nada tivesse escrito, suas ideias ficaram gravadas no pensamento de seus discípulos, marcando um momento decisivo da história do homem. Sua figura representa realmente um hífen, e é por isso que podemos aceitar a lenda do seu nascimento em sentido alegórico: foi nele que o homem realizou, pela primeira vez na história do pensamento racional, a passagem da condição humana para a divina.

             

SAMOS E MILETO

 

Não é raro afirmar-se que a filosofia nasceu em Mileto, o grande empório comercial e poderoso centro marítimo da Ásia Menor. Mas há os que contestam essa glória a Mileto, admitindo-a como berço do pensamento científico, e só aceitam a filosofia a partir de  Sócrates. Diógenes Laércio, em sua Vida dos Filósofos Ilustres, confere a glória simultaneamente a Samos e Mileto. Pratica a justiça de Salomão, entregando metade da criança a cada uma dessas duas mães. Há, para ele, duas correntes iniciais na filosofia: uma é a jônica, que parte de Mileto, e outra a italiana, que vem de Samos. A primeira tem à frente Anaximandro, discípulo de Tales, e a segunda Pitágoras, discípulo de Ferécides.

Mas onde ficará Sócrates? perguntarão os leitores. Em Atenas. E é quanto basta. Porque Atenas representa a confluência  dessas  duas  correntes,  e  Sócrates  aparece como o delta natural de todo o pensamento filosófico das escolas  anteriores. Nele, a filosofia se ajunta como as águas dispersas se reúnem para formarem o grande espelho de um lago, que reflete o céu e a terra e guardam em seu fundo os resíduos de todas as distâncias percorridas. Mais tarde, os homens abrirão canais nesse lago, e esses canais se chamarão Platão e Aristóteles, que irão fecundar os séculos futuros.

Voltemos, porém, a Samos e Mileto, às vertentes das grandes correntes filosóficas. E vejamos por que e de que maneira foi possível que a filosofia surgisse nessas cidades. Estamos a seis séculos antes de Cristo, e o mundo é bem diferente do nosso, embora os homens sejam bastante semelhantes aos do nosso tempo. Se fizermos uma comparação rigorosa, daremos razão aos  céticos, que nada esperam da Humanidade. Mas se nos lembrarmos de que as civilizações são como os cursos de uma escola, em que os alunos se renovam para aprender as mesmas lições, talvez possamos alimentar um pouco de esperança. Pitágoras, como veremos, foi um dos mestres dessa escola.

Samos centralizava, por sua posição geográfica e seu poder marítimo, a vida do arquipélago, e Mileto florescia na Jônia, enriquecida por suas relações comerciais com a Lídia, o Egito, a Espanha, e dividindo o seu poder marítimo com a Fenícia e Cartago. Possuía uma esquadra de cem vasos de guerra. Herdeira da civilização cretense, Mileto contava com uma tradição espiritual que pudera desenvolver-se bastante na fase de enriquecimento que se estende entre os séculos VII e VI antes de Cristo. Uma plutocracia poderosa vivia à larga sobre as costas de uma numerosa sub-população escrava. A riqueza e a tranquilidade permitiam o ócio indispensável ao florescimento do espírito. Quando falamos em Tales, pensamos num cérebro prodigioso e solitário, mas isso não  corresponde  à verdade. Tales era um membro da comunidade intelectual que florescia em Mileto. Sua ascendência, proveniente de seus dons naturais e de seu interesse maior pela Cultura, permitiu-lhe destacar-se e fundar uma escola em que nasceria a ciência impregnada de filosofia, "como um pinto ainda úmido ao sair do ovo".

Neste ponto precisamos abrir um parêntese, para explicar que, realmente, houve filosofia antes de Mileto e de Samos. Não era o que hoje entendemos por essa palavra, mas era o pensamento debruçado sobre os seus problemas, elaborando lentamente a sua compreensão do mundo. Dessa filosofia primitiva, matriz de que nasceriam a filosofia e a ciência tais como as conhecemos hoje, o pensamento destacou-se aos poucos através de fases sucessivas, como o dia se destaca da noite. A Escola de Mileto é um bom exemplo dessa mecânica da libertação do pensamento. Tales acreditava que o mundo nascera da água, o elemento mítico por excelência; seu discípulo Anaximandro, que a origem de tudo era o apeiron, substância infinita, indeterminada, que envolve todos os mundos, alimentando suas formas e seus elementos; e Anaxímenes, seu discípulo, entendia que a origem de todas as coisas era o ar, "princípio indeterminado".

Vemos claramente a mecânica do desprendimento ou da libertação do pensamento de suas origens míticas. Embora a ideia de Anaxímenes pareça um retrocesso, pois volta da concepção metafísica de Anaximandro à física de Tales, a verdade é que essa volta, como acentua Windelband, representa um progresso no esclarecimento de problema fundamental. "Como a nossa alma, que sendo ar mantém a nossa unidade, assim também o sopro ou o ar mantém o mundo em sua totalidade." Essa frase de Anaxímenes revela a exata posição do seu pensamento. O ar lhe permitia, por assim dizer, corporificar num elemento físico a abstração de Anaximandro que Pitágoras, por sua vez, corporificará nos números pares. O pensamento liberto do poder absorvente da água retomava a matéria para nela poder operar, mas já agora a dominando, na forma fluídica do ar, do sopro, que é o pneuma ou espírito do homem ou do mundo. Não é esse mesmo o processo científico dos nossos dias? Partindo do concreto o pensamento não vai para a abstração da hipótese a fim de voltar, depois, ao concreto da lei, da positivação da causa, ou da relação?

Pitágoras faz também essa trajetória cíclica. Partindo dos ensinamentos órficos de Ferécides, seu mestre em Samos, vai ouvir em Mileto os mestres da nova escola. Ali descobre, segundo  supõem diversos historiadores, um elemento novo: os números. Tales lhe ensina o poder dos números, que lhe permitem medir a altura de um objeto pela sombra e a distância de um navio no mar. Anaximandro, por sua vez, lhe mostra a função dos números na elaboração dos mapas, permitindo localizar as cidades em suas distâncias exatas, de uma para outra. Teria sido o primeiro mortal a fazer um mapa e um relógio de sol.

Mileto e Samos, as duas rivais marítimas e comerciais, defrontam-se intelectualmente no encontro de Anaximandro com Pitágoras. Por trás do primeiro, está a figura de Tales; por trás do segundo, a de Ferécides. Ora, Tales é a personificação das conquistas racionais de Mileto, e Ferécides a das tradições órfícas de Samos. Um representa a libertação do pensamento de suas origens míticas, mas o outro representa o equilíbrio do pensamento em relação às exigências sentimentais do homem. Que resultará desse encontro?

                 

EGITO E BABILÔNIA

   

Mas como e por que teria Pitágoras deixado Samos? Dizem alguns que para fugir à tirania de Polícrates, "um velho patife que se tornou imensamente rico", segundo Bertrand Russell. Outros  acreditam que o jovem Pitágoras, belo como um deus, irradiante de inteligência e sedento de sabedoria, não se contentava com a rotina da corte de Polícrates e queria correr mundo, pois era essa a única maneira, no tempo, de se adquirir sabedoria. O próprio Polícrates lhe teria dado uma apresentação para Amásis, usurpador do trono do Egito, que então imperava no Vale do Nilo. Em sua viagem para a terra dos faraós, terra de sabedoria e de mistérios, Pitágoras teria aportado em Mileto, aproveitando a oportunidade para conhecer a sabedoria nova que ali desabrochava.

A beleza de Pitágoras era uma consequência de sua natureza divina. Um filho de Apolo e da mais bela mulher de Samos não podia deixar de ser extremamente belo. Não é provável que um jovem assim, na corte de um tirano grego, onde as rosas e o vinho serviam de fundo às canções de Anacreonte, pudesse permanecer muito tempo em condições favoráveis, tendo as ideias de Pitágoras.  Ao contrário de seu pai Apolo, que várias vezes fora desterrado do Olimpo em virtude de aventuras amorosas, e mesmo de seu pai Mnesarcos, amante da riqueza e das aventuras ao largo do Mediterrâneo, Pitágoras não gostava das graças de Afrodite. Considerava o corpo como o túmulo da alma, e não podia portanto adaptar-se a um meio onde o corpo era cultuado em detrimento daquela.

Os historiadores da filosofia nem sempre concordam com as viagens de Pitágoras pelo Egito e a Babilônia, considerando a precariedade das informações a respeito. Em geral, passam rapidamente sobre o assunto, preferindo fixar-se em sua permanência em Crotona. Mas, como adverte Millepierres, não podemos rejeitar tudo o que escreveram Diógenes Laércio, Porfírio, Jâmblico e outros que basearam suas obras em fragmentos de autores ainda mais antigos, como Aristóteles, Dicearco e Timeu, que talvez se tenham informado "com discípulos diretos do mestre". As fontes históricas,  portanto, são favoráveis a essas viagens. Por outro lado, os costumes da época também as favorecem.  Os homens que desejavam aprender tinham de ir beber a sabedoria nas fontes.

Havia boas relações entre Samos e o Egito, e Burnet reconhece que esse fato é favorável à viagem de Pitágoras. O tirano Polícrates, aliado marítimo do usurpador Amásis, teria facilidade em recomendar o jovem a este. Millepierres admite a apresentação, mas lembra que Amásis, pelo fato de não ser um faraó legítimo, não gozava de simpatia junto aos sacerdotes. Tendo em conta esse fato, e baseado em Porfírio, faz Pitágoras percorrer os centros religiosos do país. Primeiro, ele se dirige a Heliópolis, a velha metrópole religiosa no delta do Nilo, munido de um papiro com a recomendação do faraó. Os sacerdotes, ciosos de seus segredos, não o recebem e o enviam a Mênfis. Nesta cidade sagrada, gigantesca reunião de templos dedicados aos atributos de Ra, o viajante é mais uma vez rejeitado. Os padres de Mênfis o enviam a Dióspolis, a cidade de Âmon, a Tebas de Cem Portas, onde se elevam duas fileiras de templos gigantescos à glória de Âmon-Ra. Nessa cidade sacerdotal, Pitágoras é aceito e começa a sua iniciação.

Durante vinte e dois anos ele permanece no Egito, familiarizando-se com a língua, os costumes, as tradições do país, e absorvendo os ensinos secretos dos templos. Torna-se, dessa maneira, o depositário  do saber egípcio, porque no fim de tão longo período o império faraônico ruiu sob o impacto das forças invasoras de Cambises, rei da Pérsia, filho de Ciro. Seguem-se à invasão numerosos sucessos, e Pitágoras consegue retirar-se do Egito para dirigir-se à Babilônia, desejoso agora de conhecer os  segredos  dos  astrólogos caldeus, dos magos e dos discípulos de Zoroastro. Entretém-se longamente com os magos medos, herdeiros de uma tradição mágica famosa. Demora-se com os discípulos diretos de Zoroastro, que então já não mais existia, aprendendo os segredos da grande batalha dualista entre o Bem e o Mal que se trava no campo de guerra do mundo, onde os homens se alistam ora de um lado, ora de outro.

Doze anos permanece Pitágoras na Babilônia, e de tal maneira se impregna dos princípios do Aventa, o livro sagrado da doutrina, que será considerado mais tarde como discípulo direto de Zoroastro. Para Aristóxeno, é Zoroastro o principal mestre de filosofia de Pitágoras. Deixando a Mesopotâmia, o filósofo regressa a Samos, onde o velho Polícrates ainda impera, apesar de todas as transformações ocorridas no mundo, e graças às suas artimanhas para com os vencedores persas. Mas Pitágoras não deseja as graças da corte. Anseia pela difusão dos seus conhecimentos e procura discípulos nas ruas. Encontra o primeiro num ginásio esportivo. É um jovem pobre, um homem do povo. Pitágoras se propõe a ensinar-lhe a sabedoria, pagando-lhe as aulas, em vez de receber. Essa a maneira que encontra para atrair o jovem. Depois, domina o seu espírito com o poder da sabedoria, e não só o discípulo continua a aprender sem nada ganhar, como lhe arranja ainda outros discípulos. O número se eleva a 28, e Pitágoras passa a ensiná-los numa gruta dos arredores da cidade. Mas Polícrates desconfia das suas intenções, e o filósofo acaba por deixar a ilha a fim de procurar um local mais apropriado e mais seguro na Itália, onde florescem as cidades novas e progressistas que os gregos haviam semeado no Sul. Dirige-se a Crotona, cidade próspera e famosa principalmente por seu avanço no campo da medicina. E ali reúne de novo uma comunidade de discípulos para lhes ensinar os segredos dos números e da harmonia.

A sabedoria está nos números, e a beleza na harmonia. Eis os dois ensinamentos iniciáticos da escola pitagórica. De acordo com todas as escolas antigas, ela contém uma parte exotérica, destinada à divulgação, e outra esotérica, privativa dos iniciados. Havia os ensinos orais privativos dos discípulos, os segredos da escola, que não podiam ser transmitidos ao povo. Eram os ensinos chamados acromáticos, nome que, mais tarde, Simplício dará também às obras didáticas de Pitágoras, destinadas apenas aos discípulos. Duas correntes se formaram no Pitagorismo, refletindo os dois aspectos da doutrina: a dos acusmáticos, interessados na iniciação moral, e a dos matemáticos, na iniciação completa. Essas correntes acabaram por diversificar-se, tornando-se a primeira totalmente religiosa e a segunda, científica. Pitágoras, para os acusmáticos (do grego: akouein = entender) era um deus e salvador; para os matemáticos (em sentido diferente do que damos hoje à palavra), um sábio.

 

NASCE A FILOSOFIA

   

Pitágoras é o pai da filosofia. Foi o primeiro homem a se chamar filósofo, segundo informam Heráclides Pôntico, Diógenes Laércio e Cícero. Antes dele existia a sabedoria, e os que a buscavam ou a professavam eram sábios. Pitágoras soube ver com mais clareza o problema do conhecimento e deu-lhe forma e nome diversos. Em palestra com o tirano Leonte, de Fliunte, respondeu a este, que o havia chamado sábio: "Nenhum homem é sábio, só Deus o é”. E acrescentou: "Não sou um sábio, mas um amigo da sabedoria", ou seja, um filósofo.

Já vimos como ele soube reunir em suas mãos, qual um verdadeiro deus, a sabedoria do seu tempo, elaborá-la no silêncio das suas meditações, e dela arrancar uma forma nova de concepção do mundo e da vida. Foi um renovador. Sua resposta a Leonte revela um alto senso de equilíbrio, uma exata compreensão das limitações humanas, a modéstia de quem não se deixa embriagar pelo vinho dos triunfos e das conquistas mundanas e lembra a lição de Jesus aos que o chamaram bom: "Por que me chamais assim? Bom só é meu Pai, que está no Céu".

Nem deus, como queriam os acusmáticos, nem sábio, como o chamavam os matemáticos; Pitágoras limitou-se ao título de filósofo, único a evocar para a sua pessoa. Filósofo não no sentido de possuidor da sabedoria, como ainda hoje pretendem alguns que invocam esse título, mas no sentido etimológico da palavra, como "amante da sabedoria". Não basta conhecer, é preciso conhecer o que se conhece, verificar se esse conhecimento é certo. Das lições de Ferécides ele passou aos ensinos jônicos, egípcios e babilônicos. O pensamento voltado sobre si mesmo, esquadrinhando os seus próprios domínios. Sócrates dirá, mais tarde, que há coisas mais importantes do que as do mundo físico. Mas Pitágoras já verificou isso, e não deixou que a idéia dos números, como princípio e essência das  coisas, absorvesse a sua inteligência. Dos números soube tirar o ritmo, a harmonia. Das coisas surgiu a alma, a sua significação, o sentido da vida humana. A filosofia é essa busca do sentido, dentro das limitações humanas.

É evidente que, em Pitágoras, não encontramos a filosofia em seu estado de pureza filosófica. Já vimos a divisão entre acusmáticos e matemáticos, os primeiros tendendo para a Religião e os segundos para a ciência. John Burnet assinala em seu livro Early Greek Philosophy (A Filosofia Grega Primitiva, que Aug. Reymond traduziu para o francês com o título L'Aurore de Ia Philosophie Grecque) a mistura do maravilhoso e do racional, tanto na vida quanto na obra  de  Pitágoras. Diz  Burnet: "A história  neopitagórica tal como a temos em Jâmblico, é um tecido de fábulas incríveis e fantásticas; mas, se lhe  tirarmos as indicações que remontam a Aristóxeno e Dicearcos, podemos facilmente construir um relato razoável, no qual Pitágoras aparece, não como um fazedor de milagres e um inovador religioso mas simplesmente como um moralista e um estadista". E acrescenta, cuidadosamente: "Poderíamos então  ser tentados a supor que seja essa a tradição autêntica, mas isso também seria um erro”.

 "Pitágoras é uma das figuras mais interessantes e desconcertantes da História", diz Bertrand Russell, acrescentando pouco depois: “Pode ser descrito, em poucas palavras, como uma combinação de Einstein e Mrs. Eddy”. A comparação é muito boa: Einstein, o cientista, que levou às últimas consequências a contribuição do pitagorismo em nossos dias, e Mary Backer Eddy, a fundadora da Christian Science da Igreja de Cristo Científica. Há numerosas Vidas de Pitágoras, que são relatos fantásticos de seus milagres, de fatos sobrenaturais. Mas quando vemos em nossos dias o desenvolvimento de correntes científicas como a Parapsicologia revelando poderes ainda desconhecidos da mente, temos o direito de perguntar se um filósofo não pode ser também taumaturgo, e vice-versa. E quando um historiador da filosofia, como Gonzague Truc, conclui o seu compêndio afirmando que somente a Mística pode resolver os problemas filosóficos, compreendemos que Pitágoras tinha o direito de ser ao mesmo tempo um filósofo e um místico.

Vimos que a filosofia pitagórica é de tipo matemático, mas vimos também que a Matemática se resolve em música. E a função da Música é depurar a alma, como a da medicina é curar o corpo. Os números são a origem e a substância de todas as coisas, mas é a harmonia que permite a conciliação dos números, para que as coisas possam existir. Vemos assim que a filosofia matemática e musical de Pitágoras apresenta-se também como precursora da dialética hegeliana, e consequentemente da dialética marxista. Mais de acordo, porém, com o seu espírito, é a dialética de Hamelin, para quem, antes da fusão do que da luta dos contrários, resulta o equilíbrio. A harmonia pitagórica é o resultado do equilíbrio entre os números pares e ímpares, como veremos mais claramente logo adiante.

OS MISTÉRIOS DA VIDA

 

O mundo é misterioso. A vida é misteriosa. Mas o homem, colocado entre os dois grandes mistérios, deve trazer em si mesmo a chave que os desvendará. Assim, os mistérios se elevam a três, pois antes de mais nada o homem tem de descobrir a chave em si mesmo. A filosofia é o caminho que leva a essa descoberta. Por isso, Pitágoras investiga, primeiro em si mesmo, depois nos outros, e depois na natureza, que confronta com o homem, as similitudes que lhe permitirão passar de um a outro.       

Vamos tentar esclarecer como isso aconteceu. Pitágoras descobre em si mesmo uma faculdade maravilhosa: a memória. Essa faculdade, naqueles tempos ainda úmidos das águas genésicas, naquela era banhada pelos primeiros clarões dos tempos, não retinha apenas as lembranças de uma vida humana. Era um precioso arquivo, onde a mente lúcida de um filho dos deuses poderia ler as vidas anteriores. Isso permitiu a Pitágoras ver-se a si mesmo nas encarnações precedentes, e saber que, antes de ser filho de Apolo, já o havia sido de Hermes. Foi esse deus, por sinal, quem lhe concedeu o dom de jamais se esquecer do que houvesse passado, em suas vidas sucessivas, na terra ou nos mundos infernais.

Heráclides Pôntico é quem nos transmite essas informações. Esse Heráclides, que parece ter sido discípulo de Aristóteles, era um homem rico, que viera do Ponto para Atenas e passara a ouvir os pitagóricos.  Daí os dados que possuía sobre a vida do primeiro filósofo. Segundo Laércio, era um homem tranquilo, de andar pausado e solene, sempre vestido de roupas leves e finas. Mas tão gordo que os atenienses trocavam o seu cognome de pôntico por um mais apropriado aos seus ares monumentais:  pômpico. Muitos livros deixou Heráclides, e suas façanhas, apesar de sua solenidade pômpica, foram espantosas.

Laércio conta-nos esta deliciosa história: Heráclides teria criado um dragão, desde muito pequeno,  encomendando a um dos seus confidentes, na hora da morte, que substituísse o seu cadáver pelo estranho bicho, a fim de que os homens pensassem que ele fora arrebatado pelos deuses em vez de morrer como todos. Tudo foi feito como ele queria, e o dragão assustou aos que foram pranteá-lo. Depois, entretanto, a farsa foi descoberta, e Laércio lhe escreveu uns versos que terminam assim: "...saíste enganado, pois a besta era por certo um dragão, e tu foste antes a besta do que o sábio".

Como se vê, tratava-se de uma curiosa figura, de um solene espertalhão, cujas informações podem não ser muito exatas. Entretanto, como as fontes pitagóricas são poucas, e estas informações se confirmam em outras fontes, o testemunho de Heráclides tem, pelo menos, o valor da curiosidade. De acordo com esse testemunho, Pitágoras dizia ter sido primeiramente Etálides, filho de Hermes; a seguir, fora Euforbo, ferido por Menelau na Guerra de Troia; depois, encamara-se como Hermotimo, e morto este, passara ao corpo de Branco, servo de Apolo em Mileto, ocasião em que tivera a possibilidade de reconhecer, no templo do  deus, o escudo que lhe consagrara em sua volta de Troia. Depois dessa encarnação, fora ainda um pescador délio, de nome Pirro, do qual finalmente passara à encarnação divina de Pitágoras, filho de Apolo.

Estas vidas sucessivas revelam a harmonia do homem com a natureza. Assim como nesta as coisas se sucedem num ritmo harmonioso, assim também, no homem, a sucessão rítmica é uma harmonia natural e necessária. Da mesma maneira, a sucessão das fases biológicas no desenvolvimento humano segue o ritmo cósmico. Para Pitágoras, a vida normal se distribuía em quatro fases harmônicas: primeira, a da puerícia, até aos vinte anos; segunda, a da adolescência, dos vinte aos quarenta; terceira, a da juventude,  dos quarenta aos sessenta; e quarta, a da senectude, dos sessenta aos oitenta. Essas fases correspondem às estações do ano: a puerícia é a primavera; a adolescência, o verão; a juventude, o outono; a senectude, o inverno. Bela teoria, sem dúvida, que prolonga a adolescência até os quarenta anos, justificando a tese otimista de que a vida começa aos quarenta!

Os mistérios da vida se dividiam assim numa sequência poética, tanto do ponto de vista metafísico, quanto do biológico. Pitágoras não era apenas filósofo, no sentido comum que hoje atribuímos ao termo, mas num sentido mais amplo, de verdadeiro “amante da sabedoria”. Partindo dos números, chegava ao  conhecimento das artes através da harmonia. Tanto aprofundava os segredos da Matemática, quanto os da Música e da Poesia. Não obstante, fiel às tradições órficas que aprendera de Ferécides, buscava antes a poesia da alma que a do corpo. Embora fosse o mais belo dos homens, ensinava que o corpo só vale como reflexo da alma imortal. Assim, praticava e recomendava a temperança, o equilíbrio, a castidade, a pureza em todas as coisas.

Sua confraria, de tipo evidentemente órfico, era da estrutura comunitária. Talvez neste ponto  assinalasse uma novidade, pois Timeu informa que Pitágoras foi o primeiro a dizer que, entre os amigos, todas as coisas devem ser comuns, uma vez que amizade é igualdade. Os bens dos discípulos deviam ser depositados em comum, para uso geral, o que nos lembra as comunidades cristãs primitivas, descritas no Livro de Atos. Havia uma regra de ouro a ser observada durante cinco anos: a do silêncio. Dura e penosa regra, mas indispensável para que os discípulos pudessem mergulhar em si mesmos, descobrindo a chave que lhes permitiria abrir as portas misteriosas do templo da vida.

Conta Laércio que durante os cinco anos de silêncio os discípulos ouviam a doutrina, mas não viam o mestre. Recebiam os seus ensinos, certamente através de "assistentes", pois só depois dessa prova podiam ir à casa de Pitágoras e conviver com ele. Uma curiosa informação é a de que os discípulos não admitiam o emprego de  ciprestes na construção de ataúdes, porque dessa madeira é o cetro de Zeus. Temos aqui o princípio da impureza da morte, que não deve misturar-se ao sagrado. Resíduo mítico, ainda da era tribal, que aparece no orfismo, como no zoroastrismo e no judaísmo. Mas outro resíduo mítico aparecerá na informação de que Pitágoras, ao se desnudar, certa vez mostrou que uma de suas coxas era de ouro. O sagrado se mistura, no pensamento primitivo, com os metais e as pedras preciosas, o que vemos também na  representação apocalíptica da Jerusalém celeste. Pitágoras, filho de Apolo, devia ter pelo menos uma coxa de ouro.

Os mistérios da vida exigiam cautelas do homem em todas as suas atividades. Assim, a própria alimentação devia ser  rigorosamente  controlada. Pitágoras  não  comia  carne, nem qualquer espécie de alimentos cozidos. Numa época em que se matavam animais em honra aos deuses, Pitágoras prestava homenagens a Apolo na ara do templo de Dolos destinada aos sacrifícios vegetais. As informações contraditórias, que o mostram comendo ou permitindo alimentação carnívora, parecem decorrer de confusões com outros personagens do mesmo nome. Uma das curiosidades das suas prescrições era a proibição de comer favas, que se tornou célebre, particularmente, através dos exercícios sintáticos de Latim com a frase de Cícero: Interdictum erat Pythagoricis ne fabis vescerentur, ou seja: era proibido aos pitagóricos alimentarem-se de favas.

A proibição de comer carne explicava-se pela necessidade de aprimoramento da alma, pois a alimentação carnívora fortificava o corpo mas enfraquecia o espírito, segundo a explicação de Plutarco.  Mas o que haveria com as favas? O mesmo Plutarco chegou a admitir uma explicação engenhosa, embora pouco convincente: Pitágoras queria afastar os seus discípulos das eleições políticas, em que os votos eram dados por meio de favas. Não comendo favas, também não entrariam no jogo político das favas-contadas.  Os doxógrafos dão explicações mais aceitáveis. A proibição teria motivos higiênicos e religiosos. Os higiênicos decorreriam da natureza demasiado farinácea das favas, causadoras de flatulências. Os religiosos, de que a produção de gases pelas favas seria uma indicação da presença de espíritos nesse vegetal. Mas há outras explicações, bastante curiosas: as favas teriam semelhanças com órgãos sexuais, excitando os instintos proibidos; seriam também semelhantes a crânios humanos, e comê-las poderia equivaler a comer antepassados; seriam ainda um alimento quente e excitante, capaz de perturbar a serenidade das ideias; ou ainda, e certamente o mais curioso, seriam, por seu caule em forma de tubo, sem obstruções internas, um conduto misterioso das almas no processo da metempsicose vegetal.

Aliás, o problema da metempsicose, geralmente mal interpretado, aparece em Pitágoras como verdadeira antecipação do evolucionismo e do transformismo modernos. O enunciado pitagórico que chegou até nós, e que parece provir do próprio mestre, diz assim: "A alma, percorrendo o ciclo da Necessidade, muda de forma vivente em cada uma de suas etapas". Millepierres adverte que a metempsicose é um simples corolário da metacosmose, ou seja, a alternância humana do ritmo cósmico da vida na concepção hilozoísta do universo pitagórico. Assim como o universo, ser vivo, movimenta-se em transformações constantes, dividindo-se do uno no múltiplo e reconstruindo sua unidade, assim também a alma humana estaria sujeita ao mesmo processo. Neste ponto, o pensamento pitagórico revela, através do absurdo aparente da metempsicose, coerência muito maior que a de certas doutrinas modernas, que pretendem fazer do homem um elemento à parte na obra da natureza.

A doutrina da metempsicose não é grega. Parece provir dos egípcios. Pitágoras a adota e a transforma numa poderosa arma de reforma dos costumes. Matar um animal e comê-lo pode equivaler a um parricídio, a um matricídio ou a um fratricídio, porque não podemos saber se naquele corpo não estará encarnado o nosso pai morto, a nossa mãe ou o nosso irmão. Porfírio nos dá um exemplo do poder reformador da teoria. Num mundo carnívoro por excelência, impiedoso para com os animais, onde a hecatombe era a forma principal de homenagear os deuses, o Pitagorismo levanta a curiosa tese da unidade das espécies vivas. Ainda hoje, grandes doutrinas religiosas dominantes estão muito longe dessa compreensão piedosa:  "É necessário convir que todos os animais pensam — diz Porfírio — e que a única diferença entre nós e eles consiste no gênero de vida, de maneira que devemos considerá-los como nossos aliados. Imolando-os, cometemos uma monstruosa impiedade".

 

O UNIVERSO MATEMÁTICO

 

A teoria dos números, segundo as informações históricas, não surgiu de simples cogitações do filósofo, mas de experiências. Pitágoras assume assim uma posição de predecessor de Francis Bacon.  Certa vez, ao passar nas proximidades de uma ferraria, percebeu que os sons da bigorna variavam de acordo com o peso dos martelos. Não obstante o erro da observação, estava lançada a premissa maior da sua descoberta. Interessado pela ideia, teria feito experiências, sem resultados, com a variação dos sons numa corda em tensão, tocada por pesos diferentes, dispostos em distâncias iguais. A seguir, fez experiências com um monocórdio, medindo as distâncias necessárias para obter as notas da oitava, e assim descobriu os intervalos musicais.

Das batidas de uma bigorna às oitavas de um monocórdio, Pitágoras dá um salto mortal para a  concepção mais audaciosa de todos os tempos: a concepção matemática do universo. Gomperz comenta, admirado: "É uma das coisas mais extraordinárias que se conhecem na história das ciências".  E é mesmo.  A concepção pitagórica, mais tarde ridicularizada, está hoje novamente em foco. Os grandes cientistas modernos admitem que a estrutura do universo é matemática. E o que parecia ingênuo ou fantasioso em Pitágoras talvez ainda venha a revelar a sua face desconhecida ao mundo atônito dos nossos dias.

O primeiro a expor a doutrina pitagórica em público foi o seu discípulo Filolau, contemporâneo de Sócrates. Até então, o ensino do mestre não saía dos círculos fechados das confrarias, à maneira do ensino secreto dos antigos mistérios. E é com estas palavras, de uma força racional e emotiva que nos toca ao mesmo tempo o cérebro e o coração, que Filolau enuncia o problema da concepção matemática: O número é a força soberana e autógena que mantém a permanência eterna das coisas cósmicas. Nesta frase poderosa está praticamente contida a doutrina pitagórica do universo matemático. Força soberana e autógena, poder supremo, que se gera a si mesmo e mantém a eternidade das coisas, o número é a própria essência do cosmos.

A gênese pitagórica não revela o caráter mítico da jônica. O universo não nasce da água, mas de um princípio matemático. Pitágoras, tantas vezes acusado de prejuízos órficos, eleva-se do mítico ao racional num lance de gênio. O número um, a unidade, é o princípio de todas as coisas. Poderíamos dizer, numa paródia bíblica: "No princípio era o número". Mas esse número inicial é a unidade, que se fragmentará na multiplicidade, para gerar o cosmos. Nele, nesse misterioso número um que paira no princípio das coisas, acima do abismo, no limiar da eternidade, no centro do incognoscível, no meio daquilo que não tem lados nem meio, nesse número que não é apenas forma, mas também e principalmente essência, força, poder, energia e luz, tudo está presente. E dele, por isso mesmo, tudo irá eclodir. O número um é imóvel. Paira em meio do nada, contrastando o vazio, como afirmação única e absoluta em meio à absoluta negação.  Ao seu redor, nada existe. Nem há qualquer possibilidade de existência. Basta, porém, que o menor movimento nele se produza para que a Década se desencadeie, o número dez, a perfeição, se projete no absurdo, em sucessivos lances criadores, gerando o universo.

O número um é ímpar, mas tem em si mesmo o par. É o par-ímpar, que encerra em si os contrários, mas não em contradição, e sim em harmonia. O primeiro e mais leve movimento produz o número dois, e com este número temos o primeiro desenvolvimento geométrico: surge a linha. Juntamente com a linha temos o primeiro par, e com ele, o princípio da sabedoria, que permanecia e continuará imutável na unidade, se desdobra em opinião, em começo da ciência. A seguir, temos o número três, e com ele a superfície, o espaço físico, o triângulo, a figura perfeita, que apresenta um começo, um meio e um fim; o número quatro, número dos números, que gera o quadrado, cria o sólido e os seres individuais, representa a alma e seu aparato sensorial; o número cinco, primeira junção do par e do ímpar, forma da luz e da união dos sexos; o número seis, primeiro produto da multiplicação do ímpar pelo par (2 X 3), correspondente aos corpos vivos, e cujo cubo (216), chamado psicogônico, é o que gera a alma; o número sete, da razão, que não tem fator nem produto na Década; o número oito, primeiro cubo, número da amizade; o número nove, quadrado do primeiro ímpar, última unidade, correspondente à medicina. Finda a série das unidades, temos a Década, o número do universo, o número dez, que é definição e determinação de tudo, e sem o qual nada pode existir.

Na Tábua das Oposições ou dos Contrários, que, segundo alguns estudiosos, Pitágoras teria encontrado na Babilônia, temos a base da formação das coisas.  De um lado ficam os números pares, que formam a representação do infinito; de outros os ímpares, que representam o finito. Ou seja, o ilimitado e o limitado. É do equilíbrio dos dois que resultam as coisas. Do lado ímpar, que é o da unidade, temos o limitado ou definido, o masculino, a direita, a reta, a luz, o repouso, o bom e o quadrado. Do lado par, temos o ilimitado ou indefinido, o feminino, a esquerda, o movimento, a curva, a treva, o mau e o retângulo. Entre os dois lados encontra-se a harmonia, que permite o equilíbrio, a fusão dos números e a produção das coisas. Graças ao poder conciliador da harmonia, o cosmos é gerado do caos. O universo, pois, é um processo dialético, resultado da fusão dos contrários.

Vejamos, agora, num quadro geral, que espécie de universo resulta dessa fusão dos números, através da harmonia, ou seja, desse processo matemático que se resolve em música. O mundo é um ente vivo, de forma esférica, e sua alma é o Éter. No centro desse corpo está a unidade, o primeiro corpo, o gérmen universal. Ao redor, as esferas celestes, que rodam de oeste para leste, e em torno destas, a camada periférica das estrelas fixas. Os corpos celestes, que são a Terra, o Sol, a Lua e os cinco planetas, produzem a música das esferas, ao girar em torno do fogo central da unidade. Não ouvimos essa música universal e divina porque ela é contínua, não dispomos do contraste do silêncio, que nos permitiria  percebê-la. Para completar a Década, temos ainda a Antiterra, que Aristóteles entendeu ter sido inventada para resolver a dificuldade da explicação matemática, e que os historiadores da filosofia, em geral, consideram da mesma forma. Não obstante, o problema da Antiterra está sendo novamente colocado pela ciência moderna, que trata, em escala mais ampla, do Antiuniverso. E Bréhier considera a explicação de Aristóteles uma simples boutade.

O universo matemático de Pitágoras aparece-nos, assim, com duplo aspecto: é ao mesmo tempo uma construção imaginária e uma dedução científica. No plano da imaginação, sua beleza é indiscutível.  Pitágoras nos dá uma verdadeira obra de arte, uma espécie de ficção científica da mais alta perfeição. No plano da ciência, oferece-nos uma construção matemática admirável. Bertrand Russell, com sua autoridade de matemático, ressalta a importância do pensamento pitagórico em sua fusão inovadora de religião e raciocínio, de fé e razão, e chega mesmo a proclamar: "Não conheço qualquer outro homem que tenha exercido tanta influência, como ele, na esfera do pensamento".

      

A ESTRANHA MORTE

 

Pitágoras, se teve um nascimento estranho, também parece haver morrido de estranha morte. Os deuses são assim: nascem e morrem de maneira surpreendente. Os últimos dias do filósofo decorreram em Crotona, na Magna Grécia, para onde se retirara depois de uma possível desavença com o tirano Polícrates. Organizando, ali, na grande e progressista cidade, a sua confraria, obteve êxitos animadores e parece, por fim, ter se interessado pela luta política que se desenvolvia entre Crotona e Síbaris. Vencida a rival elegante e alegre de Crotona, todas as possibilidades pareciam abrir-se para o filósofo e sua confraria.  Entretanto, acontecimentos imprevistos, ao que dizem alguns historiadores, motivados por ciúmes políticos fizeram que se desencadeassem violentas campanhas contra os pitagóricos.

Casado com Teano, filha de Brontino, Pitágoras constituiu família. Tinha uma filha de nome Damos, e um filho chamado Telauges. Ambos, ao que parece, faziam jus ao nome e à glória do pai. A filha, que ficara com os manuscritos dos Comentários de Pitágoras, teria preferido morrer na pobreza do que ceder os valiosos originais a interessados de muito dinheiro, segundo informações de Lísis, citada por Laércio. O filho teria merecido esta referência de Empédocles: "Ilustre filho de Teano e de Pitágoras".   Apesar disso, nada deixou que justificasse a referência. Teano, segundo diz Laércio, teria deixado alguns escritos. Como se vê, toda uma família de estudiosos.

É difícil dizer-se como teria morrido, de fato, o filósofo. As versões a respeito são as mais variadas.  Num ponto, porém, todas ou quase todas concordam: Pitágoras teria morrido, de uma forma ou de outra, depois de completar setenta anos, quase cumprindo as quatro fases sucessivas da vida de acordo com o  ritmo cósmico da sua concepção. Passou pelas quatro estações: a primavera, o verão, o outono e o inverno.  Esta última foi um tanto rigorosa. Na vencedora Crotona, as campanhas contra a confraria pitagórica tornaram-se mais violentas, quando um certo Cílon, de família rica e nobre, teve o seu ingresso na seita  impedido pelo filósofo. Este Cílon era um agitador. Organizou uma liga antipitagórica e levou a sua  campanha às  últimas  consequências.

Uma curiosa versão diz que Pitágoras conversava na casa de seu amigo Mílon quando os inimigos o atacaram, ateando fogo na casa. Pitágoras conseguiu escapar, mas foi dar numa plantação de favas, onde se viu cercado pelos inimigos. Para avançar, teria de pisar nas favas. Para não o fazer, preferiu entregar-se e os adversários o mataram, cortando-lhe a garganta. Ao mesmo tempo, cerca de quarenta de seus discípulos também foram mortos, e apenas alguns conseguiram escapar, entre os quais Lísis, a que nos referimos atrás. Outra versão, essa de Heráclides e Dicearcos, é a da fuga do filósofo para Metaponto, onde teria se suicidado no Templo das Musas, por exaustão, após quarenta dias de jejum.

Laércio repete uma versão curiosa de Hermipo, segundo a qual Pitágoras, fugindo de Crotona para a Itália, com os discípulos, teria se envolvido numa luta entre agrigentínos e siracusanos em favor dos primeiros. Com a derrota dos agrigentínos, Pitágoras e os discípulos conseguiram fugir, mas deram com uma plantação de favas, que tiveram de contornar. Enquanto o faziam, foram presos e mortos pelos siracusanos. Entretanto,  parece  que  Pitágoras conseguira escapar, pois ao chegar à Itália afastara-se para um recanto, construindo uma habitação subterrânea, onde se escondera para esperar o fim da luta. Sua mãe, que não se explica de que maneira estaria ali, dava-lhe constantemente, por escrito, notícias pormenorizadas da luta. Quando esta terminou, Pitágoras saiu das entranhas da terra, e declarando que viera do Hades, contava aos siracusanos os sucessos da luta. Estes se comoveram e o elegeram preceptor de suas mulheres. Pitágoras instruiu-as, e elas se tornaram pitagóricas.

A vida lendária do filósofo acaba se esfumando, assim, numa série de informações contraditórias. Não se conseguiu saber, jamais, com segurança, como Pitágoras terminou os seus dias. Acredita-se que tenha morrido nas campanhas desencadeadas por Cílon contra a confraria na própria Crotona, possivelmente entre os anos de 504 e 500 antes de Cristo. O chamado Poema Áureo de Pitágoras só foi composto, segundo as investigações de Nauck, no quarto século da nossa era. Não pertencem, pois, ao filósofo. Não obstante, Gomperz e Zeller entendem que o poema deve ter sido compilado com base na tradição oral, contendo alguns versos realmente pitagóricos.

 

Texto publicado originalmente no livro OS FILÓSOFOS, Ed. Paidéia.

 

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