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SARTRE

(1905-1980)

 

De Marx a Sartre a filosofia dá novo salto no abismo, que nos lembra o mergulho no agnosticismo de Hume. Mas desta vez não é necessário um Kant para salvá-la. Como uma águia em voo inclinado, com uma asa voltada para o céu e a outra para o abismo, a filosofia continua a atravessar os desfiladeiros do seu destino sem fim. Em Marx, como em Sartre, ela vai tocar com a ponta da asa esquerda a escuridão subterrânea, mas com a ponta da asa direita continua mergulhada no azul. Não se veja, porém, nesta alegoria, qualquer relação com a direita e a esquerda em política. Porque nesse terreno as duas posições geralmente se igualam como as encostas contrárias de um mesmo precipício.                                                                

Ninguém melhor, talvez, para centralizar uma visão panorâmica da filosofia atual do que Jean-Paul Sartre. Esse escritor polimorfo e admirável que tanto esplende no romance quanto no teatro e na filosofia, revelando em toda parte uma inteligência penetrante e viva, dominadora e criadora, é o tipo acabado do intelectual contemporâneo. Carrega em si mesmo a grandeza e a miséria do nosso tempo: o esplendor intelectual e o tumulto moral.

Nele confluem, por isso mesmo, as forças criadoras e destrutoras da nossa época. Sua filosofia é um grandioso monumento contraditório, em que o mais admirável é o equilíbrio da mola gigantesca sobre o vazio dos alicerces. Nada prova melhor o poder ilusório da mente, de que nos falam os hindus, do que essa construção mental, puramente fictícia, que pretende afirmar-se como a última palavra da percepção filosófica da realidade.

O marxismo mantém o seu prestígio em nosso mundo atual, como o ponto mais forte de ligação entre a filosofia moderna, cujo período se encerra com a primeira conflagração mundial, e a filosofia contemporânea, que começa a partir dessa guerra. Ao seu lado, correntes positivas e metafísicas prolongam também uma atitude espiritual fortemente vinculada ao passado recente, à época moderna e ao passado remoto, o medievalismo e a própria antiguidade greco-romana. O existencialismo surge em nosso tempo como uma espécie de concepção inteiramente nova, não obstante carregando consigo inegáveis heranças do passado recente e do passado remoto num equilíbrio de contradições que o torna o expoente típico do homem e do momento presentes. É, pois, uma nova direção do espírito, característica da nossa época. Daí a razão dos sucessos contínuos não tanto da doutrina de Sartre, que permanece pouco conhecida, mas das obras literárias e teatrais de sua autoria e de sua companheira Simone de Beauvoir.

Não se pode confundir essa direção filosófica atual com a obra de Sartre. Esta é apenas um momento ou um aspecto dessa direção. Mas não parece demais afirmarmos que é o aspecto principal, ou pelo menos o mais característico do movimento e o que mais tem agitado o mundo após a segunda conflagração mundial. Sartre aparece, assim, como o filósofo dos novos tempos. E ao mesmo tempo em que assume essa posição, revela também a sua face angustiada de profeta da negação.

Os novos tempos se transformam de possível esperança em imediato desespero. Sartre é às vezes considerado um continuador de Marx, por seu desencanto e sua repulsa à sociedade burguesa e a toda a sua estrutura arbitrária. Mas na verdade é um negador de Marx, pois nega todo o otimismo do último profeta hebreu, suprime-lhe os sonhos de um mundo melhor, contradiz-lhe amargamente a confiança no homem, no progresso e no futuro, e acaba negando a própria natureza humana.

A fonte intelectual do existencialismo é esse terrível anti-intelectualista dinamarquês Sören Kierkegaard. Começa, pois, nesse fato, a primeira contradição do movimento.

Mas existe outra fonte, essa realmente existencial e não intelectual: a realidade do mundo contemporâneo. Foi dela que partiu Gabriel Mareei ao elaborar os seus princípios semelhantes aos de Kierkegaard, cujas obras ainda não conheciam. Na ordem da razão, a premissa maior do movimento vem do pensador dinamarquês: a existência precede a essência. Na ordem emotiva ou vivencial, o ponto de partida é o sentimento da fragilidade humana. Este sentimento aparece em Sartre como náusea, como repugnância generalizada e é explicado em sua obra fundamental por uma estranha e ao mesmo tempo curiosa dialética da viscosidade.

Mas, no plano intelectual, há outros afluentes do existencialismo sartreano: Hegel, Husserl e Heidegger, não obstante a posição antiexistencial do segundo. E assim, como ao tratar de Marx referimo-nos a um evangelho da moeda às avessas, ao tratarmos de Sartre podemos referir-nos a um Darma budista ao contrário. É bastante conhecida a expressão de Sartre: "O Nada assedia o Ser", às vezes traduzida assim: “O Ser é assediado pelo Nada". Essa expressão, tomada como síntese metafórica da sua doutrina, é levada por Sartre às últimas consequências na dialética absurda da sua concepção do ser.

Assim, aquilo que para Heidegger era a finalidade do ser, a morte, converte-se em Sartre na inutilidade do ser ou na sua absurdidade. Não obstante, a morte é o fim do ser, que busca a morte para adquirir consistência, e que nela só encontra o Nada, mas um Nada que é realmente nada. “O Homem é uma paixão inútil", diz Sartre. O nirvana de Buda se transforma assim na sua interpretação ocidental: o Nada. Não há bem-aventurança possível, há apenas o fracasso, a frustração.                            

O curioso em tudo isso é que Sartre faz sempre as coisas às avessas. Para firmar o conceito de existência, parte do nada, ao qual irá retornar com a extinção do ser. O sentimento de angústia de Heidegger se transforma nele em náusea, mas não é de maneira emocional, e sim rigorosamente racional que ele constrói o seu gigantesco sistema lógico de filosofia. Toma o homem como ponto de partida do mundo da existência, do todo, e não lhe dá nenhuma consistência. Tira o ser do nada, ou de uma "falha do nada”, coisa por certo difícil de entender. Apropria-se do método fenomenológico de Husserl e reduz todas as coisas à simples aparência, ao fenômeno, mas acaba construindo uma teoria ontológica do homem. Toma, enfim, uma atitude positivista e constrói uma metafísica hegeliana em que vemos o ser se desenrolar na existência através de um processo dialético.

A leitura do seu livro fundamental nos dá às vezes a impressão de um torvelinho em que encontramos a confluência e o conflito de todos os problemas da filosofia. Nesse aspecto, Sartre aparece como um digno representante da atualidade: é uma síntese dos conflitos universais do pensamento.

 

JEAN-PAUL E SIMONE

 

Marx teve um anjo para o acompanhar e auxiliar na realização da sua tarefa filosófica: Engels. Mas precisou de outro anjo, a suave e bela Jenny Westphalen, para o amparar na vida doméstica. Sartre, como um homem atual e, portanto, prático, conseguiu uma síntese dos anjos de Marx. Reuniu ambos numa só entidade: Simone de Beauvoir.

Essa jovem parisiense de boa família, jeune fille rangée, como ela mesma se classificou, seria para Sartre o que foram Engels e Jenny para Marx. Conta Simone, em suas memórias, que ao entrar no curso de agregé da Sorbona foi recebida por Sartre com estas palavras: "A partir de agora, tomo conta de você". E tomou, de fato. Dali por diante, Simone de Beauvoir foi não somente a discípula, mas também a companheira fiel do profeta da negação.

Jean-Paul Sartre nasceu em Paris, a 21 de junho de 1905. Vinha ao mundo numa época tranquila e feliz, em que a burguesia parecia haver estabelecido definitivamente o seu reino sobre a Terra. Era a Belle Époque, a fase em que Paris parecia repetir a felicidade da Grécia antiga, com seus artistas e sábios sonhando belezas e construindo sistemas sobre a miséria das populações rurais e suburbanas.

Dois anos e meio depois, a nove de janeiro de 1908, nascia Simone de Beauvoir, "[...] num quarto de móveis laqueados de branco, que dava para o Boulevard Raspail", segundo ela mesma nos informa. Não demoraria muito, porém, a queda do paraíso burguês. Seis anos depois do nascimento de Simone, a Primeira Guerra Mundial explodiria na Europa.

Jean-Paul e Simone viveram assim na mesma época, formando-se num mundo convulso, entre duas conflagrações. A guerra de 14-18 não abalou apenas a tranquilidade europeia. Sacudiu o mundo burguês até as raízes e produziu o advento do comunismo na Rússia. Jean-Paul e Simone puderam ainda viver dias tranquilos, mas profundamente minados pelas inquietações que iriam conhecendo na proporção em que tomavam consciência do mundo. Sartre perdeu o pai com apenas oito meses de vida. Aos onze anos, viu sua mãe contrair novas núpcias, e revoltou-se contra isso, a ponto de começar então, segundo alguns dos biógrafos, a sua revolta contra o mundo e o seu ateísmo.

Apesar disso, fez um curso secundário normal, classificando-se sempre em primeiro lugar, e matriculou-se depois na Politécnica, que oferecia os cursos mais cobiçados da época. Logo a deixou, alegando não tolerar as matemáticas, e entrou para a Escola Normal Superior. Aos dezoito anos, publicou um trabalho curioso, L’Ange du Morbide, numa revista que fundara com Paul Nizan, e no qual já revelara o seu mórbido interesse pela viscosidade. Ocupou depois uma cadeira de filosofia no Liceu do Havre, lecionou nos liceus Pasteur, Janson de Sailly e Condorcet, em Paris.

Em 1937, as grandes revistas francesas começaram a publicar artigos de Sartre. Em 1938 ele publica o seu primeiro romance, A Náusea, que desperta a atenção da crítica. Mas em 1939 estoura a Segunda Guerra Mundial e Sartre segue para a frente como enfermeiro, mas cai prisioneiro dos alemães, em 1940, e passa um ano num campo de concentração. De volta para a França, encontra uma cadeira a sua espera na universidade e outra na Escola de Arte Dramática da Dullin.

Pouco depois, renunciou ao magistério, entregando-se às atividades de escritor e conferencista. Em 1945 funda a revista Les Temps Modernes e conta já com um grupo de discípulos que o seguem nas reuniões famosas do Café de Flore, no bairro de Saint-Germain-des-Prés, onde também se agrupam indivíduos excêntricos que procuram fazer do existencialismo uma doutrina da licenciosidade e da revolta sem sentido. É dali que partem as deformações populares da doutrina, interpretações que muito se assemelham às que foram dadas ao epicurismo.

Antes de iniciar-se no romance, Sartre fizera suas publicações filosóficas desde 1933, com A Imaginação, prosseguindo em 1940 com O Imaginário, para em 1943 publicar sua obra definitiva, O Ser e o Nada. Nas duas primeiras revela forte influência da fenomenologia de Husserl, mas na segunda aparecem as de Heidegger e Hegel, além de Kierkegaard, Nietzsche e outros. Este último livro, L’Être et le Néant, essai d’ontologie phénoménologique, é uma admirável construção filosófica, realizada com absoluta perfeição técnica, a ponto de ser considerada uma obra clássica da filosofia atual. De leitura difícil por sua complexidade e pela abundante terminologia técnica empregada, chega a confundir os próprios especialistas, que confessam não ter certeza da boa interpretação deste ou daquele trecho. Sartre foge, assim, à característica de clareza do espírito francês para aproximar-se da nebulosidade da metafísica alemã.

Enquanto Sartre fazia sua agitada carreira, combatido por esquerdistas e direitistas, condenado como um demônio que pretendia destruir todos os valores burgueses, Simone de Beauvoir, como acontecera com Engels no caso de Marx, voava timidamente ao seu redor, mas já se preparava para auxiliá-lo efetivamente. Cabe-lhe a glória de haver imposto um nome feminino na filosofia atual, com obras que realmente ficarão. Na história da filosofia, os nomes femininos parecem ter sido riscados. Simone reivindica um lugar para a mulher moderna no concerto filosófico do seu tempo, e sabe conquistá-lo.

Curioso notar-se certa semelhança entre o seu papel perante Sartre e o papel de Engels perante Marx, a começar pelo episódio do nascimento. Lembremo-nos de que Engels se incumbiu de levantar e expor o problema das Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado enquanto Marx traçava os longos e carregados panoramas de O Capital. Simone, enquanto Sartre cuida da construção gigantesca de L’Être et le Néant, preocupa-se com a posição da mulher na sociedade burguesa e traça um panorama da moral existencialista, em Para Uma Moral da Ambiguidade, já em tradução para a nossa língua.

Vimos aparecer em Sartre um elemento estranho: a viscosidade, que parece uma denúncia de situações interiores confusas, a pedir, como ele mesmo faz em L’Être et le Néant, uma explicação psicanalítica. Em Simone de Beauvoir vemos surgir também uma espécie de signo de emoções profundas e inconscientes, que devem ter determinado em sua vida tanto a timidez dos seus primeiros tempos de jeune fille rangée, quanto a revolta que veio mais tarde.

Ela nos dá essa indicação em suas memórias, informando logo noprimeiro capítulo: "Dos meus primeiros tempos ficou-me, por assim dizer, somente uma impressão confusa: algo vermelho, preto e quente. O apartamento era vermelho, como vermelhos eram o tapete de lã, a sala de jantar Henrique II, a seda estampada que disfarçava as portas de vidro, e no escritório de papai, as cortinas de veludo". E termina essa confissão com estas palavras: "Assim passei minha primeira infância. Olhava, apalpava, e ia apreendendo o mundo, de dentro do meu abrigo".

Até onde poderíamos afirmar que estas coisas sejam determinantes, ou apenas determinações do psiquismo, é problema da psicologia moderna. Mas não há dúvida que no problema do viscoso em Sartre, e do abrigo vermelho e quente em Simone, há sinais de problemas psíquicos profundos, revelando pelo menos uma atitude de desajuste, e consequentemente de defesa e de revolta diante do mundo. Quem sabe não estarão, nesses dois fatos, a explicação de parte, pelo menos, da posição existencialista sartreana?

O encontro de Simone de Beauvoir com Simone Weil, relatado nas memórias da primeira, é também significativo. Diz Beauvoir que desejava conhecê-la, pela fama dos "seus dons filosóficos" e da sua inteligência. Cursavam ambas a Sorbona. A fome havia devastado a China e Weil, segundo diziam, chorara ao saber do fato. Beauvoir conta que ela lhe declarou incisiva, logo no início da primeira conversa: "[...] somente uma coisa conta hoje na Terra: a revolução que daria de comer a todos". Beauvoir respondeu, não menos peremptória: "[...] que o problema não consistia em fazer a felicidade dos homens, mas em dar-lhes o sentido à vida". Weil a olhou dos pés à cabeça e disse: "Bem se vê que nunca teve fome". Beauvoir declara: "Compreendi que me catalogara: uma pequena burguesa espiritualista [...]".

Vemos assim que o existencialismo, na sua formulação sartreana, que é a mais completa e original, apresenta alguns característicos firmemente ligados às condições pessoais de seus formuladores. Não é apenas uma filosofia do desespero, surgida das circunstâncias de um mundo em decomposição. É também uma filosofia do conflito, que nasceu dos conflitos mais profundos dos próprios filósofos, quer em suas relações íntimas, ou auto-relações, quer em suas libações exteriores. Essa natureza conflitiva tira ao existencialismo sartreano a possibilidade de disputar com o comunismo, como desejava Sartre, o domínio do mundo contra o cristianismo.

Ambos os adversários, comunismo e cristianismo, possuem um conteúdo social que o existencialismo não possui. Este se apresenta, segundo os próprios marxistas denunciaram, como uma filosofia intelectualista, de tipo burguês, tendendo à dissolução, como o próprio regime social a que pertence. As relações entre as criaturas não se processam no terreno do amor cristão ou da solidariedade marxista, mas da luta egoísta. O próximo não é mais próximo, nem irmão nem camarada: é apenas "o outro". O próprio amor sexual se transforma em luta de conquista.

Beigbeder assinalou que o existencialismo e o marxismo têm pontos fundamentais em comum, como o interesse exclusivo pelo mundo e pelo homem. Ambos destronam Deus para coroar a criatura. Mas não nos esqueçamos das divergências profundas. O marxismo objetiva construir um mundo novo, com base nas leis da vida social, longamente observadas e estudadas através das lutas revolucionárias. O existencialismo é um cerebralismo, uma construção a priori que não se interessa pelo social, mas pelo individual.

O diálogo entre as duas Simones explica bem as divergências. Enquanto uma pensava na fome das multidões, a outra queria apenas dar aos famintos "[...] um sentido para a vida”. Não há dúvida que tanto Sartre como Beauvoir evoluíram bastante nos rumos do interesse social. Mas já era muito tarde para modificarem os princípios assentes da sua filosofia. Os marxistas, em geral, interpretaram essa evolução como simples manobra política, através da qual Sartre pretenderia conquistar as massas, inacessíveis ao existencialismo.

Da ocupação alemã da França surgiram as mais estranhas ligações, forjadas entre forças contrárias na luta contra o inimigo comum. Não é de admirar que tenha havido uma tentativa de aproximação entre o existencialismo e o marxismo. Durou pouco, porém. Surgiram logo os motivos de divergência. Em fins de 1944, Sartre dirigiu-se aos comunistas tentando colocar as coisas às claras, e dessa tentativa nasceu o seu opúsculo O Existencialismo é um Humanismo. Em 1947, Kanapa, ex-discípulo de Sartre, replica o folheto com outro, dirigido aos militantes comunistas e intitulado: O Existencialismo não é um Humanismo.

Sartre, logo mais, fundou o seu Ressemblement Démocratique Révolutionnaire, movimento político de pouca duração. Por outro lado, os cristãos atacaram o existencialismo sartreano com as suas próprias armas, criando um existencialismo cristão. Premido, assim, entre dois adversários poderosos, ambos capazes de dominar as massas que lhe são e continuam a ser inacessíveis, o existencialismo sartreano, apesar de sua perfeição formal, estiola-se numa solidão cerebrina. Sartre nunca publicou o tratado de moral que prometera, e o trabalho de Beauvoir não supriu essa falha, apesar de seu valor.

Apesar de tudo isso, o existencialismo sartreano permanecerá como expressão de uma época, e também pela contribuição que oferece para a revisão de princípios e valores sobre os quais conseguiu lançar novas luzes. Canto de cisne da sociedade capitalista, a doutrina de Sartre, paradoxalmente contrária a essa mesma sociedade em seus pronunciamentos, e tão entranhada nela pela sua absurdidade, pelo seu egoísmo e pelo seu hedonismo, nada pôde oferecer para um futuro em que não crê, senão contribuições na ordem intelectual. Entre o cristianismo, que oferece perspectivas de salvação no além, e o comunismo, que as oferece aqui mesmo, na Terra, as massas não iriam preferir, como não preferiram, a metafísica de classe do existencialismo sartreano. Aliás, tamanhas são as suas sutilezas que chegamos a pensar que essa doutrina não poderia surgir noutra língua: somente a habilidade do francês poderia permitir uma construção dessa ordem.

 

A DIALÉTICA DO SER

 

Depois do exame preliminar de algumas questões, necessárias à boa colocação dos problemas da ontologia fenomenológica, Sartre apresenta, a partir do capítulo quarto de L’Être et le Néant, ou O Ser e o Nada, aquilo que constitui a dialética existencialista do ser. Dialética, aliás, que procede de Hegel. Lembremo-nos dos momentos hegelianos do ser: primeiro o em si; depois, o para si; e, por último, a fusão dialética em si e para si. É exatamente esse o processo de desenvolvimento do ser na filosofia de Sartre. O ser de Hegel existe em si, como ser lógico ou ideal; manifesta-se na natureza, na objetivação, que é o para si; e volta a si no seu retomo ao absoluto, à pura natureza espiritual. Sartre, como o fizera Marx, adota a técnica de Hegel, mas esvaziada de seu conteúdo espiritual.

O em si, ou l’en soi, de Sartre, aparece como um ente fechado em si mesmo, existente por si, sem relação alguma, nem ativo nem passivo, sem nenhuma dependência. É um ser que repousa em si mesmo, num mundo imóvel e imutável, que lembra a concepção eleática, como adverte Bochenski. No capítulo segundo da terceira parte do livro, a dialética sartreana do ser adquire contornos nítidos. O filósofo readquire a clareza típica do pensamento francês para explicar:

Existe o meu corpo: essa é a sua primeira dimensão de Ser. Meu corpo é utilizado e conhecido por outro: essa a sua segunda dimensão. Mas enquanto eu sou para outro, o outro se revela a mim como o sujeito para o qual eu sou objeto. Trata-se, já o vimos, de uma relação fundamental com outro. Eu existo, portanto, para mim, como conhecido por outro, em particular na minha própria facticidade. Eu existo para mim como conhecido por outro a título de corpo. Essa é a terceira dimensão ontológica do meu corpo.

Vimos, assim, como o em si pode sair da sua imobilidade, do seu isolamento. E pela transformação no para si, le pour soi, o ser humano. Vem, então, mais uma vez, a dialética hegeliana, pois essa transformação só é possível por um processo de negação. Sartre, porém, não fala em negação como causa, e sim como consequência. A causa da transformação é o desejo, o anelo do ser, que de ser em si anseia por se tomar um ser no mundo, segundo a expressão de Heidegger. Então o anelo determina a passagem do ser em si para aquilo que Sartre chama o para si, e que é nada mais do que a criatura humana. Entretanto, não se veja aqui um espiritualismo confuso, pois o em si e o para si não constituem uma dualidade corpo-alma, mas apenas partes de uma estrutura única.

Consciência e corpo constituem um todo. Aliás, Sartre declara que a consciência "[...] não é mesmo outra coisa senão o corpo". Assim, como vemos, o para si quer dizer consciência. E ao mesmo tempo quer dizer nada. Porque a negação procede do anelo de ser, e o homem como tal não é um ser, mas sim um não-ser. Ora, o não-ser só pode ser o nada. Com isso, porém, Sartre não nega a realidade concreta do homem. Esta existe, éo em si, constituído por seu ego e seu corpo, seu modo de ser. O nada é aquilo que consideramos especificamente humano, e que na realidade não existe.

Esta dialética do ser é terrivelmente sutil e complexa. Há momentos em que nos lembramos das sutilezas gregas: dos argumentos de Zenão sobre o movimento ou das discussões sofísticas. A respeito da consciência, por exemplo, Sartre ainda afirma que ela é nada porque todo mundo está ao seu redor, fora dela. Se tudo está fora, ela não contém coisa alguma. Mas é graças a ela que o mundo existe, que existem coisas. Porque a consciência tem de ser como não sendo, ou seja, pelo processo da negação que Sartre deriva, assim, para uma consequência, como já frisamos acima.

De que maneira se dá isto? É pela diferenciação entre mim e as coisas que eu me torno alguma coisa. Mas essa alguma coisa que eu sou não é mais do que a negação de que eu não sou a outra coisa. Assim, diante de uma pedra que existe na sua existência compacta como o em si, eu me identifico como não-pedra. Ao fazer essa identificação, sou um ser no mundo, um ser que se anuncia perante os objetos, mostrando o que não é.

Vejamos um pequeno trecho de Sartre sobre isto, de O Ser e o Nada, no capítulo terceiro da segunda parte: “A relação original de presença, como fundamento do conhecimento, é negativa. Mas como a negação vem ao mundo pelo para si, e como a coisa é o que ela é, na sua indiferença absoluta de identidade, aquele não pode ser a coisa que se mostra como não sendo o para si. A negação vem do próprio para si". E logo mais: "[...] pela negação original, é o para si que se constitui como não sendo a coisa". E ainda, a seguir, esta definição que o leitor deverá ler e reler com muito cuidado: "O para si é um Ser para o qual se apresenta em seu Ser a questão do seu próprio Ser, enquanto este Ser é essencialmente uma certa maneira de Não-Ser, um Ser que ele põe ao mesmo tempo como outro que não ele". Depois disso, conclui Sartre: "O conhecimento aparece, portanto, como um modo do Ser".

Tentemos tornar tudo isto um pouco mais claro. O em si é um Ser em plenitude. Mas nessa plenitude não há consciência. Então o em si deseja transformar-se em alguma coisa que tenha consciência. Para isso, ele se transforma no ser humano, que é o para si, um ser consciente, ou a própria consciência. Entretanto, ao fazer esta passagem, o em si desaparece para si mesmo, uma vez que passa a tomar conhecimento das coisas, dos demais em si pelo processo de relação exterior que resulta na sua própria negação, ou seja: vejo esta pedra, sei que não sou ela, e por isso sou.

Minha consciência do mundo resulta da compreensão de que eu não sou o mundo, eu não sou nada. Mas há também o processo de relação interna, pelo qual a consciência observa-se a si mesma. Para isso, ela tem de sair fora de si, e assim se nega a si mesma. Quando eu digo: sou triste, identifiquei o para si num determinado momento, mas nesse mesmo momento ele deixou de ser, pois o em si teve de retirar-se dele para observá-lo, e com isso o em si também se negou.

Atentemos bem a isto: para tomar conhecimento de si a consciência tem de se afastar, pois o conhecimento implica alguma distância entre sujeito e objeto. Essa distância é o que Sartre chama a fenda ou fissura que se abre no ser. Essa fenda é uma falha, é o nada. A consciência de si, longe de ser plenitude do ser, como querem os filósofos, é negação do ser. Por isso, Sartre considera a consciência uma degradação. Ela é como "o verme no fruto". Para nos livrarmos dela, só há um recurso: voltar ao em si, ou melhor, transitar para o em si a fim de nos transformarmos no em si para si, entidade que é plena e autônoma, realização completa da dialética do ser.

Vemos em tudo isto o mesmo processo hegeliano de tese, antítese, síntese. Sartre chama de circuito da ipseidade a relação do para si, com a sua possibilidade de ser, e mundo a "[...] totalidade do Ser enquanto é atravessado pelo circuito da ipseidade", ou seja, o circuito do ser que volta a si mesmo.

O para si se divide em três ec-stasis, que são: uma tendência para o nada, uma tendência para o outro, e uma tendência para o ser. O primeiro ec-stasis é o da consciência e da liberdade, e já vimos que a consciência é o nada. Quanto à liberdade, é a possibilidade de escolher que o homem possui em virtude de não estar determinado pelo seu passado, que ele aniquila. Mas a liberdade não é uma faculdade do para si, é ele mesmo. E assim aparece alguma coisa que o homem é, embora continue a ser nada, pois a sua essência, a sua especificidade, aquilo que chamamos de humano, é a liberdade. E esta, por sua vez, nada mais é do que a indeterminação. Disso provém a angústia do homem, a sua náusea de existir, que por último é o seu próprio existir.

No segundo ec-stasis, o homem tende para o outro como para uma liberdade, igual a ele, que ele deve conquistar. Daí o sexo, que é uma forma ilusória da posse do outro. No terceiro ec-stasis o homem tende para o ser, pois não quer continuar como para si nem voltar ao em si, que é uma viscosidade e lhe dá náusea. Esse é, pois, o momento da síntese, em que o homem pretende tornar-se um deus, um ser autossuficiente no em si para si. Mas nos três ec-stasis o homem fracassa, pois a finalidade de todos eles é contraditória e, portanto, impossível. Sartre fecha a porta do para si, fecha o circuito da ipseidade, que se torna um círculo vicioso, um tormento maior que o de Tântalo: "uma paixão inútil".

A dialética do ser se completa com uma teoria do conhecimento que, como já vimos, está implícita no próprio desenvolvimento inútil do ser. Para Sartre, só existem fenômenos. O em si, que poderia ser tomado, quando mal compreendido, como uma espécie de número kantiano, não é nada disso. Como já vimos, ele está no próprio para si. Não há, pois, nenhuma preocupação com a coisa em si. O conhecimento que temos das coisas é direto, imediato, exato, pois não é mais do que o postar-se do para si perante elas.

Sartre cai, aparentemente, na vulgaridade do conhecer direto do marxismo, mas escapa ao vulgar por essa complexa teoria do ser que examinamos rapidamente. O conhecer existencialista é simples na sua relação de sujeito e objeto, mas complexo quanto à possibilidade dessa relação, que implica toda a dialética do ser.

Vimos o Darma budista às avessas. O homem se dirige para o nirvana, mas este nada mais é do que o próprio nada. Não o nada mítico de Buda, onde o ser não se inquieta e não se angustia porque atingiu a beatitude, mas o nada trágico de Sartre, em que o ser encontra a angústia, o desespero, o fracasso e a náusea. O homem é um circuito de tortura e dor. Não há esperança alguma para ele, na Terra ou no céu. No trânsito do em si para o para si e na síntese impossível do em si para si, ele não é mais do que uma frustração permanente.

Descartes imagina um gênio maligno que podia enganar-nos com a mentira de uma existência fictícia para divertir-se à custa da nossa angústia. Mas esse foi apenas um recurso na sua marcha para Deus, um meio de esclarecimento dos problemas suscitados pelo cogito. Sartre, sem criar o gênio maligno, o implanta no mundo através do próprio existir. Essa a filosofia do desespero e do absurdo, que surge em nossa época como uma forma original e típica do pensamento contemporâneo. Esse o espetáculo atordoante que Sartre nos oferece; uma inteligência poderosa construindo no vácuo um mundo de estranhas contradições.

Jean Wahl adverte que não devemos considerar as filosofias da existência como sérias ou sistemas de dogmas filosóficos, mas como discussões do homem. "O Homem é o Ser que põe em discussão a sua própria existência, que a põe em jogo e a joga, que a põe em perigo". Isto se aplica particularmente à doutrina de Sartre. A existência humana é, por assim dizer, lançada sobre a mesa. Sartre a retira do emaranhado das concepções teológicas, místicas, religiosas, mas não permite que se emaranhe nos princípios da ciência ou nas cogitações filosóficas aprioristas. Deseja ver a existência humana em sua naturalidade, em sua espontaneidade, em sua pureza, como uma coisa que não depende de outras e pode ser examinada em si. Por isso, ele corta ao mesmo tempo as ligações do homem com Deus e com o mundo, para encará-lo como um processo autônomo e, consequentemente, solitário.

Compreende-se que Sartre tenha sido obrigado a pagar muito caro por esse capricho. Marx havia feito coisa semelhante, mas apenas de um lado. Comte tentara o mesmo, sempre com a necessária cautela. O homem de Marx e de Comte foi desligado de Deus e do sobrenatural, mas continuou no mundo e no natural. O homem de Sartre é ao mesmo tempo desligado de Deus e do mundo, e só lhe resta cair na angústia, no desespero, na náusea.

O próprio Kierkegaard não chegara a tanto, e por isso mesmo seu desespero não tem o sentido esmagador e absoluto da náusea sartreana. Essa audácia de Sartre é maior que a de Prometeu, e por isso mesmo o seu castigo é maior, atinge a toda a espécie. Entretanto, é preciso descobrir novas leis para esse homem sem Deus e sem ciência. É preciso dotar esse para si angustiado de uma nova moral, que possa suprir a perda da moral religiosa e da moral mundana.

 

UMA MORAL DA AMBIGUIDADE

 

Não é Sartre quem vai construir, ou tentar construir essa nova moral. É sua companheira e discípula, Simone de Beauvoir. Aliás, ninguém melhor do que essa antiga jeune fille rangée, essa jovem criada no aconchego de um lar burguês da Belle Époque, essa mulher que viu partir-se em mil pedaços a moral que lhe haviam impingido na infância para tentar a reconstrução necessária. Mas que moral pode oferecer o existencialismo sartreano? Já vimos que o homem é para ele um simples movimento, um projeto, uma coisa em trânsito, e em trânsito para um alvo que nunca poderá atingir. Mas vimos também que o homem é liberdade. Assim sendo, podemos admitir uma moral fundada no valor da liberdade, único bem que o homem sartreano pode desfrutar em seu trânsito inútil pelo mundo.

Como conciliar, porém, o valor da liberdade para uma construção moral, com o egotismo fatal do para si, que só vê nos outros adversidade e oposição? No marxismo há luta de classes, jogo de interesses, dominação e exploração, mas há um ideal de igualdade e solidariedade humanas, que conclama os homens para uma vida fraterna. No existencialismo sartreano não há nada disso, só há isolamento e náusea.

Em O Ser e o Nada Sartre põe este problema em evidência quando estuda o encontro de duas pessoas num jardim. Chego primeiramente eu, contemplo o jardim, e ele me oferece o seu espetáculo de verdura e beleza. Mas, de repente, chega outro, e nesse mesmo instante o jardim me escapa e se oferece a ele, e mais do que isso, eu também sou incluído nessa oferta, como um objeto de que ele se serve para a sua satisfação ou como um estorvo à sua contemplação. O outro, pois, é sempre uma ameaça e me põe sempre em perigo.

Simone de Beauvoir tenta franquear esse abismo para construir a moral sartreana. Tarefa difícil, e que lhe oferece uma série de contradições para serem superadas. Mas o próprio Sartre encerrou O Ser e o Nada com um capítulo intitulado Perspectivas Morais. Deve ser possível, portanto, uma moral sartreana. Além do conflito entre o eu e o outro, teremos ainda de nos advertir de um elemento do existencialismo de Sartre, que é a ambiguidade. Este elemento constitui um entrave para o estabelecimento de uma nova moral, pois afirma que há sempre a possibilidade de interpretações diversas para as nossas ações.

Beauvoir enfrenta os problemas da nova moral com a mesma coragem de Sartre, e constrói o seu trabalho com o título de Para Uma Moral da Ambiguidade. Assim, o monstro é capturado logo no início e convertido em instrumento de ação. A técnica existencialista revela-se eficiente. A ambiguidade contempla o jardim sartreano. Beauvoir se aproxima e lhe rouba o espetáculo. O monstro se transforma aparentemente em obstáculo, em estorvo à sua contemplação e aos seus fins. Beauvoir o converte em elemento da paisagem, em simples objeto. O eu domou ooutro. E o outro, subjugado, e por isso mesmo degradado, imerso na vergonha de ser objeto, como diz Sartre, nada mais pode fazer do que servir aos propósitos do eu. Essa primeira luta nos mostra o sentido e a natureza da moral da ambiguidade. Todos os monstros serão dominados por um processo ambíguo, para que a nova moral seja construída.                                                    

Beauvoir compreende, por exemplo, o isolamento do para si ou da consciência, a sua agressividade fatal a sua permanente atitude de defesa. Mas dominado o monstro da ambiguidade, tudo se torna fácil. É possível dar-se também uma interpretação ambígua a essa posição da consciência. Nesse processo, a náusea sartreana deixará o seu lugar à alegria. Beauvoir regressa ao Jardim de Epicuro, abre as portas do hedonismo e prega a alegria. Mas o epicurismosartreano se apresenta como a contrafação popular do verdadeiro epicurismo. E Beauvoir ensina que é preciso “[...] adensar-se em prazer, em felicidade" para que a liberdade possa assumir, no mundo, "[...] a sua figura carnal e real”.                                                

Por outro lado, essa alegria que subitamente vem lançar as suas luzes nas sombrias regiões da náusea não deve ser individualista, não deve reduzir-se à cabina secreta do para si, mas comunicar-se aos outros. Eis que se verifica um novo milagre, e o outro não é mais o inimigo, o adversário contra o qual devemos defender-nos. A ambiguidade nos permite encará-lo também de outra maneira, interpretá-lo de outra forma, como o nosso semelhante, ao qual devemos oferecer a nossa alegria: "[...] para que a ideia de libertação se tome concreta, é necessário que a alegria de existir se afirme em cada um".   Simone de Beauvoir, pelo milagre da ambiguidade, transforma em sorriso a carranca do existencialismo.

O próprio Sartre, depois de seu incidente com os comunistas, passa a proclamar que O Existencialismo é um Humanismo, título que dá, como já vimos, a um folheto que precede a sua tentativa de organização política. Pouco lhe resta, no imenso edifício da sua doutrina, para que possa provar a tese. Mas o pouco que resta é enfim suficiente: o conceito de liberdade como essência do humano.

Sartre se apega a esse princípio e ensina que a liberdade, como bem supremo, como a "[...] única fonte de valor" não pode ser privativa de um eu isolado, mas deve existir no plano social, comunicar-se e desdobrar-se, por assim dizer, em todos. A liberdade humana não conhece entraves, é absoluta, e o homem é o único responsável por si mesmo, por seus atos e por suas escolhas. Deus não existe, não influi, não manda: o homem está só diante do mundo e pode escolher à vontade.

 

O REVERSO DA MEDALHA

 

Até aqui, tratamos de Sartre e Simone de Beauvoir, mas devemos lembrar outro teórico existencialista de importância, que é Merleau-Ponty, com seu livro A Estrutura do Comportamento, publicado em 1942, e com Fenomenologia da Percepção, de 1945. Rejeitando ao mesmo tempo a psicologia clássica e moderna, o comportamentismo americano e a gestalt alemã, Ponty proclama a unidade do comportamento humano como conjunto que nem pertence ao plano do psiquismo nem ao do simplesmente material. O comportamento, como estrutura, é apenas fenômeno, objeto de percepção. Maurice Merleau-Ponty não é um filósofo da angústia, mas um teórico da fenomenologia pura. Nele, o existencialismo se torna bem mais apto a passar por um humanismo do que em Sartre. Tentou uma conciliação do existencialismo com o marxismo, ao qual entretanto jamais aderiu.

Albert Camus, um dos maiores amigos de Sartre, é considerado o filósofo do absurdo. Em sua obra O Mito de Sísifo, publicada em 1943, considera o homem um condenado a rolar eternamente a pedra pela encosta da montanha. A vida e a história são absurdas, não têm sentido. O desaparecimento de Deus tirou o sentido à vida e às coisas. Mas, como temos de existir, como existimos apesar de tudo, devemos criar uma moral apropriada ao absurdo para podermos suportá-lo. Essa moral se delineia no romance A Peste, publicado em 1947: é a moral da solidariedade humana, do serviço ao próximo, da caridade.

Camus rompeu com Sartre em agosto de 1952. Em Camus, ainda mais do que em Merleau-Ponty, o existencialismo negativista caminha para novos rumos, aproxima-se de uma compreensão menos fria do problema humano.

Camus é ainda um revoltado, e proclama que só a revolta ou o suicídio podem libertar o homem. Recorreu à revolta, mas a quatro de janeiro de 1960 encontrou uma espécie de suicídio involuntário, perecendo num desastre de automóvel a cem quilômetros de Paris, próximo a Sens.

Que dizermos de Georges Bataille, diretor da revista Crítica, poeta, amigo de Sartre, ex-cristão fervoroso, que passou a pregar a negação de Deus como única atitude viril? Em A Experiência Interior pretende ensinar a maneira de transformarmos a angústia em delírio. A princípio isso parece mal, entretanto não é. Bataille está mais ou menos no caminho de volta. O delírio nos livra da angústia para nos proporcionar a alegria absurda que expandimos num riso selvagem, semelhante ao da loucura. Por esse estranho caminho, Bataille vai parar numa espécie de misticismo, como saudoso do seu ardor cristão do passado.

E assim, por etapas, na área do próprio existencialismo sartreano encontramos os pontos de ligação com o reverso da medalha, ou seja, com a forma de existencialismo cristão, oposto ao existencialismo ateu. Já vimos, aliás, que a origem do existencialismo é protestante. Ele começa com Kierkegaard, esse estranho pastor dinamarquês para quem o cristianismo autêntico era somente o de Cristo agonizante na cruz.

Espírito amargo e torturado, Kierkegaard nos mostra em seus livros que o existencialismo é antes de tudo uma consequência do cristianismo sombrio da Idade Média. Quando analisamos a figura de Kierkegaard e a sua obra, compreendemos que o cristianismo atual, ao se defrontar com o existencialismo ateu, se encontra na mesma posição do capitalismo ao enfrentar o comunismo: em luta com o monstro que ele mesmo gerou e criou em suas entranhas.

Desde os fins do Império Romano, o cristianismo, sob a forma mística da crucificação, da efusão de sangue, do pecado, absorvia todo o trágico do espírito grego para misturá-lo com a angústia do judeu subjugado e oferecer essa estranha mistura ao mundo em decadência. O remédio amargo, entretanto, prometia cura breve e anunciava a redenção do homem num mundo melhor. Ainda se acreditava muito no Reino de Deus na Terra, na volta do Cristo redivivo, e dessa maneira, o trágico da nova mensagem se doirava depromessas futuras.

No correr da Idade Média, vimos acentuarem-se as cores trágicas do cristianismo, que se afundou num milênio de cilícios e torturas voluntárias de toda a espécie para resgate do pecado. A luta dessa concepção trágica da vida com o alegre hedonismo dos gregos e romanos é um dos mais estranhos capítulos da história, revelando profundezas abismais da alma humana.

Bastariam as imolações piedosas de hereges nas fogueiras, imolações que tinham por fim a salvação do herege, que eram, afinal, atos de pura caridade, para nos mostrarem a profundidade desses meandros. Não é de admirar que no século XIX um cristão dinamarquês, dotado de estranha sensibilidade e de espantosa cerebração retomasse o trágico dessa terrível impregnação histórica para levantar novamente o problema da angústia e do desespero.

Da mesma maneira, não é de admirar que na França do século XX, país da mais densa impregnação medieval, e num período de tensão profunda após duas conflagrações mundiais, alguns espíritos de formação cristã se lembrassem de proclamar de novo o reinado da angústia e do absurdo. Vítor Hugo, no prefácio de Cromwell, já notara a influência do cristianismo na transformação romântica do mundo, transformação que não implicava apenas na introdução do romântico, mas também na do trágico, nas concepções humanas.

Sartre conserva em sua doutrina os resíduos dessa impregnação. O "verme no fruto", que é a doença da consciência, ou a consciência considerada como um mal, é ainda o dogma da queda. A salvação como passagem para a síntese do em si para si é a promessa do céu, mas a frustração do homem nesse ponto é a importância da alma para vencer o pecado. A náusea da existência lembra a repugnância dos fanáticos pelas alegrias da vida mundana.

Sartre, que nos oferece o Darma budista às avessas, no plano cristão é um anacoreta ao reverso. Seu isolamento no para si é uma fuga ao mundo e às suas implicações. Não é à toa que o semelhante lhe aparece como inimigo. Também para os anacoretas, o próximo simbolizava, em geral, o Diabo, "[...] trazia consigo o pecado e as tentações do mundo, ameaçava roubar-lhe a visão da paisagem celeste”.

Bataille tem razão quando, aderindo a Sartre, procura a solução do riso selvagem. O ardoroso cristão, o penitente carregado de visões místicas, de trágicos signos oferecidos por uma educação de catequese sente-se viril ao levantar-se contra Deus, mas ao mesmo tempo é tomado pelo terror íntimo que deveria levá-lo à loucura. Como esta não surge, Bataille a elabora intelectualmente, procurando a expansão do terror na forma selvagem do riso. Quem sabe se, com uma gargalhada impura, capaz de sacudir céus e terras, Deus fugirá para sempre e o deixará em paz, ou se revelará de uma vez, para condená-lo e puni-lo?

Gabriel Marcel, que é um homem dos fins do século passado, pois nasceu em 1889, aparece inicialmente como discípulo de Henri Bergson, de cuja doutrina vai extrair a sua própria filosofia do ser. Em 1914, quando explodiu a primeira conflagração mundial, encerrando com fumo e sangue a época moderna, Gabriel Marcel já contava 25 anos e publicava a sua primeira peça teatral, intitulada La Grâce. Nessa mesma época, sem ter lido Kierkegaard, iniciava o seu Diário Metafísico, no qual revela posições semelhantes às do pensador dinamarquês. Assim, por vias diversas, o protestantismo e o catolicismo, e locais diversos, a Dinamarca e a França, a herança medieval ressurge em dois pensadores isolados dos fins da época moderna, projetando os primeiros sinais do existencialismo.

No inverno de 1916 para 1917, Marcel entrega-se a experiências metapsíquicas, de que Bergson também participa. Admite a realidade dos fenômenos, mas espanta-se com o seu sentido sacrílego. Em L’Iconoclaste, peça dramática escrita nesse período, revela a intensidade do choque sofrido. No Journal de Métaphysique escreverá mais tarde que não pode admitir a evocação dos mortos fora do plano divino, ou da intervenção divina. Embora admitindo a realidade dos fenômenos, afirma que eles só podem realizar-se, sem sacrilégio ou heresia, pela mediação de Deus. E está claro que Deus, nesse caso, é um Deus bem definido, que pertence à religião católica e deve agir através dos meios litúrgicos.

Este fato é importante para mostrar-nos a posição fideísta e sectária de Gabriel Marcel. Posição, aliás, que ele trazia consigo como uma forma de seu próprio ser, apesar de só haver ingressado no catolicismo em 1929. Na realidade, Marcel era católico desde que começou a pensar. Apenas por motivos circunstanciais, como o agnosticismo paterno e a morte prematura da mãe, o haviam impedido de professar mais cedo a religião a que aspirava. Por isso o consideramos católico desde as primeiras anotações do Diário Metafísico.

Este homem nascido e formado no século passado, bem antes de que as angústias contemporâneas invadissem o mundo, forma ao lado de Kierkegaard para demonstrar a tese de que o existencialismo não pode ser encarado apenas como pensamento atual. Aliás, sua posição fideísta é também uma prova do que dissemos acima: o existencialismo é consequência do sentido trágico do cristianismo medieval.

Gabriel Marcel se firma como o anti-Sartre, ou seja, a figura máxima do existencialismo cristão na França. Como Sartre, adota o método fenomenológico e põe em equação os problemas da relação eu-e-outrem, de existência e essência, de angústia e desespero. Seus livros Homo Viator e Ser e Ter constituem uma dupla resposta cristã ao ateísmo desesperado de O Ser e o Nada, de Sartre.

No primeiro, proclama que o conceito de pessoa implica transcendência, e que a sua divisa não é sum, mas sursum. O homem é um projeto, como em Heidegger e Sartre, mas destinado à realização e não ao fracasso, pois se projeta na direção de Deus. No segundo, estuda o problema das relações entre o Ser e o Ter, como o título o indica, sustentando que o ser nem sempre tem o que é, e nem sempre é o que tem. Ele mesmo é um exemplo disso, pois teve de conquistar aos poucos o que era, ou seja, o que era antes de ter.

Marcel descobre uma diferença entre problema e mistério, que é antes de ordem teológica do que filosófica: um problema é o que está sempre a nossa frente, por inteiro, e que podemos apreciar de maneira direta, objetiva; um mistério é alguma coisa na qual somos envolvidos, ou à qual estamos ligados, e que portanto não pode ser visto no exterior, objetivamente. As relações eu-e-outrem aparecem como meio de compreensão do homem, e não de disputa ou hostilidade. Essas relações se passam na forma verbal da segunda pessoa, e Marcel as chama relações-tu. São de duas espécies: as relações-tu com os homens, que podem objetivar-se, e as Relações-Tu com Deus, que não podem objetivar-se, pois se passam no plano da fé, e não no da razão. Nas relações-tu Marcel descobre dois valores fundamentais, que são a fidelidade e a esperança. Mas a esperança é o principal, que substitui nesta filosofia cristã o desespero, a angústia e a náusea dos outros sistemas existenciais.

Restaria ainda tratarmos do russo Berdiaiev, para quem o absurdo da vida só existe fora da iluminação da fé, o que concorda com o pensamento de Camus, segundo o qual o desespero existencialista começou com a expulsão de Deus. Ou do alemão Karl Jaspers, um dos maiores sistematizadores do existencialismo, que aparece como um discípulo de Kant aplicado à filosofia da existência, ao mesmo tempo que sob forte influência neoplatônica. Mas seria um nunca acabar o que mostra ao leitor a riqueza do filão existencialista na filosofia contemporânea.

Nosso intuito foi apenas o de centralizar em Sartre, por sua importância no pensamento existencial, e particularmente por sua originalidade dramática, uma possível visão da filosofia contemporânea. Como acentua Bochenski, não devemos esquecer-nos de que o existencialismo trata do ser em seu nível humano, em seu sentido terreno, e reduz a problemática da filosofia ao homem e à Terra, à maneira marxista, mesmo quando escapa pela tangente da metafísica ou pela aspiral do cristianismo. O ser é encarado em face de um problema mais gritante: o da existência. Há correntes mais amplas e mais profundas na filosofia contemporânea, onde o ser volta a tomar as proporções que atingira em Espinosa e Hegel, por exemplo, abrangendo a realidade cósmica.

 

Texto publicado originalmente no livro OS FILÓSOFOS, Ed. Paidéia.


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