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DESCARTES

(1596-1650)

 

Quando analisamos, em confronto, as figuras de Abelardo e Descartes, vemos que é possível estabelecer entre elas alguns paralelos curiosos. Não obstante as profundas diferenças que os marcam, Descartes pode ser considerado, em certo sentido, o sucessor de Abelardo. As diferenças começam no temperamento e no tipo físico. As semelhanças, na origem aristocrática e na ligação com as armas. Começam, apenas. Porque, se quisermos aprofundar umas e outras, veremos que dos dois lados há muito que dispor.

Mas o que realmente os aproxima é a posição filosófica. São, ambos, homens do futuro, irremediavelmente presos na armadilha do presente. E esse presente quer dizer escolástica, enquanto o futuro a que eles se lançam, por inclinação do espírito e por amplitude mental, é a época das luzes.

Descartes não era filho de senhor feudal, como Abelardo, mas seu pai era conselheiro do Parlamento da Bretanha e senhor de propriedades rurais. Graças a isso, o filósofo pôde dispor de uma herança regular em imóveis, que vendeu e converteu em renda anual para se dedicar ao estudo. Antes, no período que vai de 1604 a 1612, foi aluno dos jesuítas no Colégio de La Flèche. Quando deixou o colégio, não acreditava no que lhe haviam ensinado e queria verificar por si mesmo a realidade das coisas. Vai a Paris, onde se demora pouco, pois logo se alista no exército holandês. Participa, a seguir, sob as ordens do Duque de Baviera, da Guerra dos Trinta Anos. Em 1620 participou do Cerco de Praga e da Batalha da Montanha Branca.

Nascera Descartes no último dia de março de 1596, em La Haye, na Turena. Sua mãe faleceu poucos dias depois, vítima de tuberculose. Herdou, assim, não apenas os haveres do pai, mas também a doença da mãe, que o acabaria vitimando. Durante toda a vida lutou com a debilidade física. Uma tosse seca e uma extrema palidez o acompanharam até aos vinte anos. Não tinha, pois, a beleza apolínea de Abelardo, nem o seu temperamento romântico. Mas era mais corajoso e sobretudo mais puro, de uma pureza espiritual que jamais lhe permitiria o drama de Heloísa e a perfídia a Fulbert.

Desde cedo, o pai o chamava de filósofo, diante das incessantes perguntas do menino sobre todas as coisas. Não era à toa que esse menino, ao deixar La Flèche, perguntava a si mesmo se havia aprendido alguma coisa. E para verificar, resolve deixar os livros de lado e ler diretamente no grande livro do mundo, segundo suas próprias expressões. Sua carreira militar, se é que se pode chamá-la carreira, terminou em 1621, depois da Campanha da Hungria.

Mas das suas andanças militares ainda há o que nos interessa. Ao alistar-se no exército holandês, Descartes ficou sob as ordens do Príncipe Maurício de Nassau, que tão bem conhecemos, por sua ligação histórica com o nosso país. Foi então acusado de servir aos protestantes. Nesse período, goza dois anos de trégua, que passa em Breda, de 1617 a 1619.

Nassau gostava de cercar-se de sábios, e estavam em moda os torneios científicos. Os sábios de Breda como mais tarde se dirão, entre eles os matemáticos Dordrecht e Beckamnn, propõem questões difíceis aos colegas. Descartes intervém e resolve as questões com tal facilidade que os assombra, alcançando assim os seus primeiros êxitos no mundo dos sábios, a que realmente pertence por inalienável direito espiritual.

Descartes deixa o serviço de Nassau em julho de 1619 e segue para Francoforte, onde assiste à coroação de Fernando II, imperador da Alemanha. É depois que se alista na Baviera e participa da Campanha da Boêmia. Estamos no inverno de 1619, um inverno histórico, da mais alta importância na história do pensamento. Descartes se encontra solitário e se refugia na sua estufa para meditar. Essa meditação o leva a compreender que já leu bastante no grande livro do mundo, e que agora deve pô-lo de lado, como fizera com os de La Flèche. Sim, deve pô-lo de lado, porque há outro livro, muito mais importante para ser lido e estudado: o do seu próprio espírito, o livro de si mesmo.

Nesse recolhimento hibernal Descartes vai ter, como Paulo na estrada de Damasco, a revelação de seu destino. Diriam certos psicólogos modernos, sempre prontos a aplicar seus esquemazinhos de matéria plástica aos grandes fatos do espírito, que Descartes teve alucinações e entregou-se a delírios voluntários. Diriam os teólogos que ele recebeu a graça, mas não soube se fazer digno dela.

A verdade é que no dia 10 de novembro de 1619, em seu retiro de Ulm, o jovem René Descartes chega ao momento decisivo de sua vida. Primeiro, é tomado por um período de agitações tão intensas que o seu cérebro parece incendiar-se. O Abade Baillet, seu maior biógrafo, diz que ele, por fim, “[...] se entregou a uma espécie de entusiasmo, dispondo de tal maneira do seu espírito já cansado, que o pôs em estado de receber as impressões dos sonhos e das visões”.

Foi nesse estado que Descartes se deitou e adormeceu, sobrevindo-lhe nada menos do que três sonhos. Mas estes sonhos já lhe haviam sido preditos pelo demônio, que a exemplo do que se passava com Sócrates, o advertira de coisas por acontecer. Esse demônio, ou gênio, diz Descartes de maneira confusa, devia ter-se criado no seu próprio íntimo. Era, pois, uma entidade que se confundia com a sua própria consciência. Entretanto, não era esta. Seu aparecimento se dera precedido de um fenômeno que pode ser taxado de visionário ou metapsíquico, dependendo da disposição mental do observador. O certo é que Descartes viu uma grande luz, tão intensa que mal pôde suportá-la, e essa luz foi seguida “[...] do projeto de uma ciência admirável.”

Tão intensos foram esses fatos que Descartes chegou a aceitar que havia sido inspirado pelo Espírito da Verdade. Sua mente se esclareceu a respeito de todos os problemas que o preocupavam. Pôde ver então, nitidamente, que podia pulverizar a falsa ciência dogmática que lhe haviam impingido para criar uma nova. Sentiu-se profundamente emocionado e rogou a Deus que o amparasse, que o confirmasse na ideia de um método para a boa direção do entendimento. Rogou também a Nossa Senhora de Loreto que o protegesse, e fez uma promessa, que mais tarde cumpriu — o que mostra a seriedade e importância de todos esses fatos —, de uma peregrinação ao seu santuário.

Esse visionário, entretanto, é o fundador da filosofia moderna. É o homem que abrirá uma brecha definitiva no arcabouço da velha escolástica, rasgando as novas perspectivas ao pensamento. Sua amizade com a Rainha Cristina e a Princesa Elisabete, da Suécia, é bem conhecida. A rainha conseguiu afinal, levar Descartes para Estocolmo.

No outono de 1649 ele embarcava num navio de guerra, enviado especialmente para buscá-lo. Foi recebido na corte com todas as honras. Deram-lhe aposentos magníficos e largas possibilidades de estudo. Mas Descartes já chegava ao termo de sua vida.

A ll de março de 1650, com 54 anos, depois de nove dias de doloroso sofrimento, faleceu. Seus assistentes mostraram-se admirados com sua resignação, e Chanut escreveu a Périer estas palavras emocionantes: “A ll de março último perdemos M. Descartes. Choro ainda aos vos escrever, pois a sua doutrina e o seu espírito estavam ainda abaixo de sua candura, de sua bondade e da inocência de sua vida”.

ENTRE DOIS MUNDOS

Durante toda a sua vida, que vai de 1596 a 1650, na fase de transição da ordem feudal para a ordem burguesa, do mundo medieval europeu para o mundo moderno, Descartes será obrigado a manter-se numa posição difícil. Mais do que Abelardo, ele sentirá o vazio das fórmulas que tem de seguir, e muitas vezes perguntará a si mesmo se de fato elas são vazias ou um gênio maligno o engana. Mais do que Abelardo, sentirá a atração do futuro, mas compreenderá que não o pode alcançar.

Para sustentar essa posição não se escravizando ao passado, que no caso é o próprio presente, nem se aventurando a um futuro que ainda mal se delineia aos seus olhos, vê-lo-emos numa batalha constante. Maxime Leroy nos dá bem uma idéia dessa luta: “Descartes escapa; se esconde; dissimula um segredo; em toda a sua vida, preocupa-se com as cifras; pretende, mesmo, escrever à Princesa Palatina, usando esse meio de segurança”.

Até aos quarenta anos, não publicara nenhuma obra. Desde 1626 trabalhava num tratado, as famosas Regras para a Direção do Espírito, exposição minuciosa do seu método de pesquisa da verdade. Eram as regras resultantes da memorável noite de 10 de novembro de 1619, destinadas à construção de uma ciência admirável. Mas as Regras lhe apareciam ora demasiado extensas, ora demasiado minuciosas. Além disso, não lhe parecia certo apresentar as regras sem demonstrar previamente a sua validade. O mundo dos cânones absolutos, das verdades feitas não receberia sem remoques aquelas novas regras.

Em 1626, começa a escrever as suas Meditações Metafísicas para provar a existência de Deus e a distinção entre a alma e o corpo humanos. Interrompe-as, porém, para trabalhar no Tratado do Mundo e da Luz. Sua imaginação se exalta, seu espírito percebe os lindes luminosos de um novo universo que está bem próximo e, no entanto, tão distante. Como Tântalo, curtirá a sede, em desespero.

Num momento de entusiasmo, escreve ao seu amigo e confidente, o Padre Nersene, dizendo que com o Tratado pretende dar um mundo ao Mundo. Em 1633 conclui essa obra, que expõe, em linguagem acessível a todos — a linguagem da época das luzes — as leis naturais e alguns fenômenos da Terra e do céu. Está prestes a publicá-lo, quando surge a notícia de condenação de Galileu, em Roma, pelo Tribunal do Santo Ofício.

Esse episódio é dos mais significativos na sua biografia. Galileu fora condenado por afirmar, com base na teoria heliocêntrica de Copérnico, que a Terra gira ao redor do Sol. Tremenda heresia para o mundo escolástico, embora os próprios pré-socráticos já houvessem percebido isso. Ora, no Tratado do Mundo e da Luz Descartes afirmava a mesma coisa. E o fazia de tal maneira que não podia retirar a afirmação herética sem prejuízo da estrutura e do sentido da obra.

André Cresson comenta a situação do filósofo e conclui: “Descartes prefere não publicar o tratado, para não atrair a cólera da Igreja”. Leroy penetra mais fundo no momento angustioso: “Temeroso, assustado, ele abandona o seu Mundo e fala mesmo em queimar o manuscrito. O desencorajamento é profundo, mas o seu gênio é mais forte. E ele volta ao trabalho, mas a um trabalho menos perigoso, desta vez sobre o método”.

A 8 de junho de 1637, em Leida, aparece afinal a primeira obra de Descartes. É o Discurso do Método. Vem seguido dos trabalhos que demonstram a eficiência das novas regras: Dióptrica, os Meteoros e a Geometria. O Discurso é um resumo do seu anterior tratado das regras numa exposição mais clara do método. Descartes o publica em francês, e não em latim. Deseja atingir o povo, formar opinião além do círculo estreito dos doutos.

A obra sai anônima. Todos sabem, porém, a sua procedência. E o fato de tê-la escrito em francês não representa apenas uma tentativa de sondagem de opinião. É mais do que isso. É parte da tarefa de demolição dos velhos cânones. Descartes rompe a praxe erudita de escrever filosofia em latim. Inaugura a nova era, prestigiando a língua nacional francesa. Com essa audácia, podemos dizer que Descartes arriscou um pé no mundo futuro.

Ninguém, talvez, mais que o medievalista Gilson compreendeu melhor o drama do filósofo:

A partir do momento em que a divulgação da sua física lhe aprece perigosa, senão impossível, Descartes é um filantropo, diante de uma humanidade que ele quer beneficiar e que se recusa a receber o seu benefício. Por uma singular inversão da ordem, ele se vê obrigado a oferecer aos homens, com mil precauções, e quase se desculpando, aquilo que eles deviam implorar-lhe como o maior dos bens. Mas, por uma contradição mais singular ainda, esse gênio ativo se vê obrigado a implorar aos homens a graça de deixá-lo trabalhar tranquilo, pela felicidade deles.

Outros não tiveram e não têm essa compreensão do drama de Descartes. Acusaram-no de poltrão, de hipócrita, de monge travestido. Leroy o considera um homem que “[...] viveu mascarado depois dos 21 anos”. A verdade é que ele usou de cautela, e muitas vezes de habilidade, mas sustentando sempre os seus ideais reformistas. Sabia que era inútil enfrentar o mundo e ser por ele devorado. Nunca se viu maior consciência da tarefa a cumprir e da necessidade absoluta de cumpri-la, senão em seu sucessor Espinosa.

Cuidava da saúde e poupava as forças para realizar a sua obra, e usava o bom senso para não prejudicá-la com a provocação inútil da intolerância imperante. Lembrando que durante o século XVII houve um fortalecimento do absolutismo em França, Porter assinala: “Na vida do filósofo, em 1619, foi queimado em Tolosa o conhecido humanista Vanini”. Ora, Vanini pertencia ao grupo dos chamados libertinos, a que Descartes esteve ligado, como veremos mais adiante.

Galileu condenado, Vanini queimado. Demonstrações de brutal intolerância por todos os lados. O próprio Descartes sentia a hostilidade incessante em seu redor. Nem mesmo no mundo dos sábios haveria sabedoria. Os cânones estabelecidos pareciam fechar as consciências em verdadeiras carapaças de ferro. Mesmo na Holanda, então considerado país da liberdade, a filosofia cartesiana não é bem recebida.

Na Academia de Utreque desencadeia-se uma verdadeira luta entre Régio, discípulo de Descartes, e o teólogo Vétio. Este chega ao extremo da tentativa de agressão corporal ao filósofo, que reprova com acusações nada teológicas, ou pelo menos nada religiosas, atingindo-lhe inclusive a reputação pessoal. O senado de Utreque, como informa Cresson, vê-se obrigado a intervir no caso, suspendendo o curso de Régio.

Além desses incidentes em Utreque surgem outros em Leida, onde a própria universidade acusa Descartes de blasfemo. A intolerância escolástica ruge ao seu redor como um mar enfurecido. O embaixador de França tem de intervir para salvá-lo de maiores consequências. O filósofo percebe que nem mesmo na Holanda pode viver em paz. Terá de redobrar de cautela, de usar cada vez mais o bom senso para não dar um passo em falso, não precipitar as coisas.

De nada valeria ser condenado. O que ele deseja é destruir o mundo do falso saber que o rodeia. Se acontecer o contrário, se esse mundo o destruir ou o inutilizar, a causa está perdida. A única maneira de vencer é realizar a sua obra, é provar com o seu trabalho que tudo está errado. É necessário, pois, que se poupe, que se resguarde. Seus olhos estão postos mais alto que o torvelinho das intrigas presentes. Seus olhos estão voltados para o futuro. Descartes adota um sistema de mudanças contínuas. Ora está em La Haye, ora em Egmont-du-Hoef, em Le Crévis. Torna-se mais arredio, mergulha mais fundo no seu trabalho.

Em 1644 vai publicar os Princípios e está cheio de esperanças. O Padre Mesland lhe prometera expor a sua metafísica em Paris. Era, sem dúvida, uma grande oportunidade. As vestes sacerdotais do amigo serviriam de resguardo aos possíveis perigos. Mas eis que Mesland é enviado ao Canadá, do outro lado do Atlântico, e exatamente “[...] por causa da estreita relação que mantinha com M. Descartes”.

Até os amigos correm perigos. Ele vai se tornando uma espécie de leproso, de que tolos devem fugir. O seu contato torna os outros imundos, sujeitos a condenações, a punições. Mas em meio a tudo isso, apenas um pensamento o sustém: é preciso prosseguir, concluir a obra, realizar a sua tarefa. Terrível insistência, que o eleva à altura dos iluminados e quase o coloca entre os fanáticos. Talvez por isso não se casou, evitando compromissos que o embaraçariam, embora tenha tido uma filha em condições obscuras, mas sem nenhuma espécie de crime.

Cresson nos relata ainda um episódio bastante significativo. Em 1647, Descartes vai a Paris, porque lhe fizeram a promessa de uma pensão. Lá chegando, percebe logo que cometerá uma imprudência. Apesar de toda a sua cautela, essas coisas ainda aconteciam. Ele mesmo escreve que os responsáveis pela sua ida não queriam senão ver o seu rosto. E acrescenta: “[...] de maneira que não estou inclinado a crer que eles só me queriam ter em França como um elefante ou uma pantera, por causa da raridade, e não porque eu pudesse ser útil a qualquer coisa”.

 

O FILÓSOFO ESPADACHIM

 

Se Abelardo utilizava táticas de cavalaria para conquistar o mundo do seu tempo, vamos encontrar em Descartes a habilidade, a cautela e a audácia do espadachim. Péguy disse que Descartes conduzia o seu pensamento como uma espada. E assim era, realmente. No Colégio de La Flèche, o aluno René du Perron não aprendera apenas as disciplinas intelectuais, mas também as maneiras de um gentil-homem, ao gosto da época.

A propósito, escreve Barié: “Descartes se preparou em La Flèche em todos os exercícios físicos em moda, especialmente na esgrima, sobre a qual escreverá mais tarde um tratado, como também se tornou hábil na comédia e no ballet, então em voga [...]”.

A Arte da Esgrima, segundo informa Baillet, teria sido um dos primeiros trabalhos de Descartes. O manuscrito desapareceu, mas o biógrafo menciona de maneira segura, acrescentando que “[...] a maior parte das lições dadas por Cartésio, nesse tratado, são apoiadas em sua própria experiência pessoal”. Leroy critica a biografia de Baillet, chamando-a de lenda de São Descartes, mas respeita os seus dados objetivos.

Barié faz ironia, advertindo que Descartes aparece, na obra do bom abade, dotado de todas as virtudes possíveis. Mas, por sua vez, critica os exageros da censura de Leroy. A verdade é que, não obstante os entusiasmos e o excesso de afeição de Baillet, os episódios da vida de Descartes por ele relatados não são postos em dúvida, pelo menos de maneira séria.

Isso nos autoriza a lembrar de um episódio curioso, contado por Baillet. Acontece que Descartes se achava na Dinamarca, de partida para a Holanda. Embarcou num batel que deveria deixá-lo na Frígia Oriental. Em pleno mar, percebeu que os homens da equipagem combinavam assaltá-lo. Supunham que ele só falasse francês, pois somente nessa língua o tinham ouvido falar, e sabiam-no estrangeiro. Descartes pôde, assim, acompanhar toda a trama, em silêncio, como se nada percebesse. De repente, sacou da espada e, segundo as expressões do abade, “[...] falando na própria língua deles, num tom que os assustou, ameaçou trespassá-los, no mesmo instante, se ousassem agredi-lo”.

O que hoje pode nos parecer fantástico, nesse episódio, era natural e comum na época. Por outro lado, não devemos esquecer-nos de que Descartes fazia, nesse tempo, a sua carreira militar. Havia combatido, assistido a batalhas, participado de aventuras guerreiras. Seu físico pouco favorável e sua saúde periclitante nunca o impediram de agir segundo os impulsos da mocidade. E podemos mesmo dizer que, em certas ocasiões, ele se esquecia das regras de prudência. Suas relações com os libertinos é um exemplo disso, principalmente o episódio que muito serviu para as acusações e calúnias dos adversários, de haver hospedado em sua casa na Holanda Valle du Debarreau, o príncipe dos dissolutos e dos ateus.

Esses momentos de imprudência, se de certa maneira comprometem o seu programa de cautela e bom senso, servem, por outro lado, para contestar as acusações de covardia que lhe fizeram. Leroy desmente a lenda da impassibilidade do filósofo. Sua descrição incisiva do temperamento de Descartes merece ser transcrita: “Ele é nervoso. Tem o nosso nervosismo. É irritável. Digamos, numa palavra, que ele é apaixonado”. Nada mais justo que esse temperamento impulsivo, apesar de controlado por um raciocínio poderosamente organizado, levasse para a arena filosófica a sua habilidade e a sua audácia de espadachim.

Para não passarmos violentamente do espadachim ao filósofo, coloquemos entre ambos o escritor, que é um dos mais representativos da literatura francesa. Barié teve o cuidado de verificar a permanência de expressões típicas da arte da esgrima na correspondência de Descartes. Aliás, já acentuamos a maneira por que Descartes entrou no terreno literário, com a publicação do Discurso. Verdadeiro golpe de esgrima. Escondendo-se no anonimato e “desfechando” o tratado em francês, Descartes, por assim dizer, atacou e se defendeu.

Quanto às expressões, Barié observa: “Retornam sempre mesmo no Descartes maduro, e ao tratar de assuntos puramente científicos, expressões que são próprias de quem tem familiaridade com a arte de esgrima; alguns geômetras de Paris quiseram servir-lhe de padrinhos, ou como são aqueles que se recusam a bater-se em duelo contra os que não consideram da sua mesma classe social”. Trata-se de expressões de cartas de Mersene. Barié comenta: “Ninharias, mas frases que, entretanto, não se encontram com frequência, na literatura filosófica, e menos ainda na Matemática”.

No Discurso,como nas demais obras, podemos anotar passagens semelhantes como estas: [...] posso dizer que não passam de sequências e dependências de cinco ou seis principais dificuldades que superei e que conto como outras tantas batalhas, em que tive a sorte do meu lado”.

Ou ainda: “Não receio mesmo dizer que penso não ter necessidade de ganhar senão mais duas ou três semelhantes, para chegar ao termo dos seus intentos”.

Frases, assim, imagens e expressões incomuns na literatura filosófica e científica, principalmente da época, podem ser colhidas em quantidade nos textos cartesianos, demonstrando a constante da influência da esgrima no estilo do filósofo.

Leroy escreveu um livro curioso, mas injusto, ou pelo menos falso em suas conclusões. Descartes, le Philosophe au Masque, em que apresenta o filósofo como mascarado. Barié assinala que Descartes é ali apresentado “[...] como um grande cientista, um grande filósofo, mas também um grande impostor”. Para Leroy, Descartes tinha sempre “[...] um pensamento oculto por trás da fronte”. Mas o próprio Leroy adverte: “Descartes se sente em perigo e se defende como pode”. Noutro trecho afirma, contra a sua própria tese: “Dados esses fatos, podemos assegurar, mesmo a priori, que será falsa toda imagem do filósofo que pretenda reduzi-lo a um traço essencial”.

Não, Descartes não era um mascarado. Já o vimos no caso de suas ligações com os libertinos, de suas imprudências e audácias. E é ele mesmo, numa carta a Régio, quem coloca muito bem o problema nestes termos: “Aprovo o que tem a prudência de calar, em certas ocasiões, e não dar a público tudo o que pensa. Mas escrever, sem necessidade, de qualquer coisa contrária aos seus próprios sentimentos, e querer persuadir a esse respeito os leitores, considero uma baixeza e um verdadeiro crime”. Leroy entende que este trecho confirma a sua tese. Mas parece evidente que não. Descartes apenas reafirma o seu princípio de prudência, ao mesmo tempo em que define o seu conceito de sinceridade filosófica e literária.

 

A ESGRIMA FILOSÓFICA

 

Admitindo-se a posição sincera e leal de Descartes numa contingência histórica bastante complexa, não será difícil compreender-se a série de dificuldades da sua luta. Descartes começa pela dúvida, não a metódica, que só mais tarde aparecerá, mas a intuitiva. Ele duvida da solidez e da veracidade dos conhecimentos que lhe deram em La Flèche. Aliás, Gilson é de opinião que a dúvida e o próprio método de Descartes começaram a nascer ainda no interior do colégio. É essa dúvida que o leva a pôr os livros de lado para correr mundo e ver as coisas com os seus próprios olhos.

A seguir, Descartes percebe a ilusão dos sentidos. Também o livro do mundo o pode enganar, como tem enganado a tantos. Mas o curioso é que ele não põe em dúvida aquilo que é a própria base do mundo falso em que se encontra: a fé. Landormy entende que se trata de timidez, mas admite que o filósofo seja sincero. O que nos parece é que Descartes, cujo temperamento espiritual ficou bem demonstrado no caso da memorável noite dos sonhos, possuía arraigado sentimento religioso. Sua dúvida, portanto, não podia atingir esse ponto de certeza que havia em seu espírito, e que também se esclareceu no cogito.

Começa aí a sua primeira dificuldade filosófica. De que maneira resolverá ele a situação? De um lado, está a incerteza de todas as coisas; de outro lado, a certeza da fé. O filósofo-espadachim não faz mais do que se pôr em guarda. Firma os pés em terreno conhecido, aceitando a divisão escolástica de duas hipóstases de verdade, e conclui: “[...] as verdades reveladas estão acima da nossa inteligência, e não ousarei submetê-las à fragilidade dos meus raciocínios”. Atitude perfeita do espadachim consciente, que delimita o seu campo de ação, medindo com os olhos o alcance de seus golpes.

Alia-se, porém, a esse gesto prático, alguma coisa de irônico, que parece brotar-lhe do subconsciente, e justifica as desconfianças de Leroy. Ele afirma, e vemos sem querer um sorriso voltaireano em seus lábios, que “[...] há homens, e há aqueles que são mais do que homens”. Aos primeiros, aos quais ele pertence, compete construir laboriosamente o conhecimento. Os outros recebem a revelação divina.

Mas com essa atitude, com esse mettre en garde de esgrimista, que ainda não é senão preparação para luta, Descartes já fez o que Abelardo não conseguira nem poderia conseguir:separou a filosofia da teologia, rompeu a subordinação escolástica. Dali por diante, embora respeitando aqueles que são “mais do que homens” e possuem a ciência revelada, o filósofo cuidará da sua tarefa terrena com inteira liberdade. A ciência, por sua vez, poderá desenvolver-se livremente nas mãos dos “homens simplesmente homens”, enquanto os problemas da religião continuarão nas mãos dos “mais do que homens”.

Feita, porém, essa separação, Descartes se encontra numa situação perigosa. Pôs-se habilmente em guarda e delimitou com segurança o seu campo de ação, mas lhe falta a espada. Como esgrimir agora? Sim, pois a filosofia e a ciência, sem a base da revelação, flutuam no vácuo. Tudo é incerto ao seu redor. Resta-lhe a fé, é verdade, mas esta nada tem a ver com os problemas da razão e do sensível. A fé lhe dá somente a segurança do transcendente, daquilo que não lhe compete. Descartes deve, pois, encontrar a sua espada para continuar esgrimindo. E para encontrá-la, traça conscientemente o caminho da dúvida metódica.

Acusá-lo-ão de fingir que duvida. Como pode duvidar, se conserva no coração a certeza da fé? Mas é o próprio Descartes quem coloca o problema em sua meditação primeira:

Eis porque penso que não farei mal se, tomando com propósito deliberado um sentimento contrário, eu me engano a mim mesmo e finjo por algum tempo que todas essas opiniões são inteiramente falsas e imaginárias, até que, enfim, tendo igualmente equilibrado os meus preconceitos antigos e novos, de maneira a que eles não façam pender a minha opinião mais de um lado do que de outro, meu julgamento não seja mais dominado por maus usos e desviado do caminho reto que o pode conduzir ao conhecimento da verdade.

Como se vê, o que importa é descobrir “o caminho reto”, seguro, límpido, sem sombras de dúvidas e enganos. Um espírito arbitrário poderá sustentar que isso é fingimento. Mas um espírito sensato compreende o método filosófico e a sua posição.

Toda a cultura tradicional se assentava em hipóteses, em suposições, em afirmações dogmáticas. O mundo da escolástica era o mundo da certeza absoluta em todos os setores. A certeza, porém, vinha do passado e da revelação. As escrituras e Aristóteles, eis as fontes da certeza, ou pelo menos as suas bases principais.

Descartes sabia que na estrutura de certezas desse mundo havia, de fato, muita coisa certa. Mas como discernir essas coisas, se estavam misturadas a tantos erros? Sua atitude, segundo, aliás, uma de suas próprias imagens, foi a do homem sensato que, para separar num cesto as coisas úteis das inúteis, põe todas elas para fora. Era mesmo necessário fingir que duvidava de tudo para que tudo fosse submetido à verificação.

 

A RECONSTRUÇÃO DO MUNDO

 

Assim, pela dúvida metódica, Descartes consegue destruir não somente o mundo da escolástica, mas o próprio mundo exterior, em todos os seus pormenores. E embora guardando um respeito cauteloso pelo transcendente, acaba invadindo também a área sagrada para submetê-la ao critério da dúvida. Nem mesmo Deus escapará desse dia de juízo.

Descartes começa por duvidar do conhecimento obtido através dos sentidos, pois é evidente que os sentidos nos enganam a respeito de muitas coisas. Duvida, depois, das percepções, dos juízos, e afinal da própria razão, pois verifica que em todos esses campos podemos enganar-nos. É assim que não podemos ter certeza de nada, nem mesmo da existência das coisas exteriores, da existência do mundo. Mas depois da negação geral, uma coisa subsiste, único ponto de certeza em meio às ruínas do cosmos: Se eu duvido, eu não posso pelo menos duvidar de que duvido; e se duvido é porque penso; e se penso é porque existo.

Por esse processo, Descartes chega à sua fórmula básica: Cogito, ergo sum; penso, logo existo. O cogito se torna então uma área de certeza, o ponto em que Arquimedes poderia firmar a alavanca para mover o mundo. Descartes se firma nesse ponto. Mas, com isso, se encontra isolado.

Tem a certeza de sua própria existência, mas não tem nenhuma outra. Há um abismo entre o ser que pensa no centro do cogito e o universo exterior.

Como solucionar o problema da passagem do eu para o universo? Descartes mergulha no cogito, aprofunda-o, pois não há outro caminho a seguir. E é no próprio cogito que ele de repente se surpreende diante de Deus. Descobre, assim, que não está sozinho. Deus está com ele. Dessa contestação lógico-psicológica podemos partir para a consequência teológica de que Deus está no homem, ou como dizem os místicos, se oculta no mais profundo da criatura.

Mas o que interessa a Descartes não é isso. É, pelo contrário, reconstruir a ciência na base da certeza. A primeira certeza foi atingida, com a evidência da existência individual. Dessa, surgiu a segunda, que é a existência de Deus. Vejamos melhor como isso acontece: posso enganar-me a respeito de tudo, inclusive do meu corpo, supondo que o possuo e na realidade não o possuindo; mas não posso enganar-me, de maneira alguma, quanto à realidade de que estou pensando, pois do contrário não haveria pensamento. Há, pois, no pensamento, uma verdade intrínseca, que se impõe por si mesma, que é evidente. Essa será a primeira regra do método: só aceitar o que é evidente.

Resta saber como foi que Descartes descobriu Deus no cogito. É que o pensamento, sendo verdadeiro, também a sua autoconsciência terá de sê-lo. Ora, se o pensamento conhece a si mesmo e sabe que é imperfeito, entretanto abriga uma ideia de perfeição, que não se encontra nele mesmo. Essa ideia é a do Ser Supremo, que tem de existir como fundamento do ser pensante. Ela é tão evidente quanto à existência do próprio pensamento.

Descartes desenvolve então a teoria das provas da existência de Deus. A primeira prova, como vimos, é a ideia da perfeição existente no cogito; a segunda é a própria evidência da existência da alma; a terceira é o princípio de causalidade que, aplicada às duas primeiras, demonstra logicamente a existência de Deus. Mas há uma terceira prova, chamada argumento ontológico, e que tem suas raízes em Santo Anselmo. É a ideia de Deus em si mesma, por sua própria evidência, existente no homem. Da mesma maneira por que a ideia do triângulo implica a existência de suas propriedades geométricas, a ideia de Deus implica a existência da suprema perfeição.

E assim, a passagem do eu para o mundo está assegurada. Provada a existência de Deus, chegamos à fonte e raiz da realidade, verificando ao mesmo tempo que ela é interior e exterior. A verdade procede naturalmente de Deus, pois é uma consequência de sua própria e necessária perfeição. Surge ainda uma hipótese duvidosa: se Deus quisesse nos iludir, ele poderia enganar-nos quanto a uma realidade falsa. Nesse caso, porém, ele não seria Deus, mas um Gênio Maligno.

Este é um dos golpes mais impressionantes do espadachim, hipótese da mais pura esgrima intelectual, e que se destina a salvar, ao mesmo tempo, a perfeição de Deus e a retidão do pensamento humano. Pois se Deus é perfeito, não pode abrigar imperfeição. Ele é a garantia da certeza da nossa faculdade de conhecer. Basta que usemos bem essa faculdade, e teremos a certeza da realidade.

Está assim reconstruindo o mundo da certeza. Agora, sim, podemos afirmar que existimos, que Deus existe e que o mundo existe. Mas o universo reconstruído apresenta algumas dificuldades sérias, que vão construir a problemática da escola cartesiana. A principal dificuldade, a fundamental, resulta do dualismo dessa concepção do mundo. Existem naturalmente dois mundos justapostos; um do pensamento, e outro material. Descartes os chama: res cogitan e res extensas, ou, coisa pensante e coisa extensa. São as substâncias do mundo.

Entretanto, essa dualidade se mostra rígida. Não há permeabilidade em sua estrutura. Não há passagem de uma substância para outra. O pensamento será sempre pensamento, a matéria sempre matéria. Descartes se consola com o fato de ambas as substâncias se encontrarem em Deus e também no homem, que por seu pensamento pode conhecer e analisar a matéria. Mas o problema subsistirá, e vai tentar soluções futuras.

Pierre Gassend, o epicurista, lembrará que o mundo epicureano não apresentava essa dificuldade e proclamará que o atomismo é mais coerente e mais científico que a doutrina das substâncias inconciliáveis. Pascal se rebelará contra o racionalismo absolutista de Descartes, proclamando os direitos do coração. Geulinx, discípulo holandês de Descartes, procura resolver o problema das substâncias, e Nicolas Malebranche faz o mesmo. Ambos recorrem à fonte comum das substâncias, Deus, como o meio de ligação entre elas. Surge, porém, a pergunta embaraçosa: Deus pode conter matéria em sua perfeição? Malebranche recorre ao platonismo: em Deus não há matéria, mas as ideias das coisas materiais.O cartesianismo exerceu, entretanto, influência decisiva nos rumos do pensamento. Realmente superou o mundo escolástico e abriu as portas da mais completa renovação espiritual e intelectual da humanidade. Descartes conseguiu a vitória desejada. Suas incongruências, como acentua Bertrand Russel, foram tão fecundas como os seus acertos. Os problemas criados pela sua filosofia a salvaram de se anquilosar em novo escolasticismo. Descartes, o filósofo-espadachim, tornou-se o pai do mundo moderno. Não somente a ciência e a filosofia contemporânea decorrem do seu pensamento, tão dificilmente construído num mundo hostil, mas a própria estrutura da nossa civilização se enraíza nele.

Tem ainda o cartesianismo a seu favor — um dos maiores acontecimentos da história do pensamento – Espinosa. Esse reelaborador do sistema cartesiano está para Descartes como Aristóteles para Platão. Começou atacando o problema das substâncias, para demonstrar a impossibilidade da equação cartesiana.

A substância, afirmou Espinosa, só pode ser uma. Não há nem pode haver mais de uma, pois então não seriam independentes, e com isso não seriam substâncias. A matéria e o pensamento são apenas atributos da substância única. E tanto Descartes como os ocasionalistas já haviam intuído isso, quando falavam da união das substâncias em Deus.

Espinosa é o sistematizador do panteísmo. Deus, substância única, é o próprio universo. Pensamento e matéria são os atributos eternos e infinitos dessa substância. Os seres e as coisas são as afecções ou modos dos atributos. Assim, o homem, por seu corpo, é um modo da res cogitans.

A teoria do paralelismo dos atributos resolve o problema da interação. Alma e corpo, por exemplo, são modalidades paralelas da substância através dos seus atributos. Mas a realidade única e absoluta é a de Deus, substância infinita. Espinosa o afirma no seu tratado, Ética, extraordinário monumento que encerra a sua doutrina: “Além da substância e dos modos, nada existe, e os modos nada mais são do que as afecções dos atributos de Deus”.

Texto publicado originalmente no livro OS FILÓSOFOS, Ed. Paidéia.


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