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ABELARDO

(1079-1142)

 

A partir de Sócrates, já não podemos dizer, ao tratar do mundo da filosofia, que no princípio era o verbo. Porque o verbo está presente em todos os momentos. De Sócrates a Aristóteles, o pensamento gira em torno das palavras, provocando redemoinhos profundos, que nos levam aos mistérios da substância. A seguir, na fragmentação filosófica do helenismo, o verbo, como vimos na canônica de Epicuro, é refúgio e consolação. 

Na batalha final entre o pensamento grego e a dogmática religiosa oriental, o verbo domina o mundo com Plotino, desde as razões seminais até o esplendor do nous. Mas é com Porfírio que ele se converte em desafio ao novo mundo que se elaborará longamente no correr de toda a Idade Média. E Abelardo, nove séculos mais tarde, levantará a luva lançada pelo neoplatonismo para, em nome do verbo e através dele, afinal, configurar o edifício sincrético do novo pensamento, fundido na efervescência do caldeirão medieval. 

Não se pode, evidentemente, ter a pretensão do sintetizar em Abelardo o drama filosófico-teológico da Idade Média. Mas é evidente que se pode tomar a figura de Abelardo como centro desse drama, para através dela oferecer aos leitores uma ideia geral, uma visão de conjunto, esbatida em seus contornos e imprecisa nos traços essenciais, mas sugestiva no contexto, da lenta e profunda ebulição mental do medievalismo. Esse quadro justificará, por certo, a tese de Dilthey, de que mais do que a luta entre a razão e a fé, a Idade Média desenvolveu em suas entranhas o processo histórico de fusão das contribuições gregas, romanas e judeu-cristãs para a preparação da consciência metafísica do nosso tempo. 

Abelardo é assim a figura que nos permite passar da era helenística aos tempos modernos num voo reto do pensamento através de um milênio da história. Sua lógica, como acentua Gilson, é arrancada da metafísica dominante para se libertar em seu próprio terreno de ação, como ciência autônoma; sua teologia é uma revolta contra o marasmo e a conveniência dos meios eclesiásticos submissos; sua ética, uma coloração racional do problema da responsabilidade espiritual no plano da ação; sua dialética, ao mesmo tempo uma preparação da escolástica e um aríete lançado contra a fortaleza do autoritarismo e do dogmatismo irracionais.

Abelardo é o homem que se ergue contra o clérigo, o espírito que se opõe ao convencionalismo, a razão que fustiga o dogma. Seus defeitos são muitos, mas suas virtudes são dinâmicas e eficientes. Ele funda o humanismo medieval e antecipa a Renascença. 

Os dois grandes momentos filosóficos da Idade Média são o século V, em que Agostinho retoma em termos cristãos a filosofia platônica, e o século XIII, em que Tomás de Aquino afinal realiza, com a Suma Teológica, apoiado fortemente no aristotelismo, a desejada síntese dos princípios cristãos e do pensamento grego. Mas depois de Agostinho devemos assinalar o Renascimento Carolíngeo, no século VIII, que é o primeiro despertar dos remanescentes da cultura greco-romana no mundo bárbaro, na corte de Carlos Magno. 

Destaca-se, no fundo de trevas da época, a figura luminosa de Alcuíno, que sonha estabelecer em Paris uma nova Atenas, mais brilhante que a do passado, porque iluminada pelos sete dons do Espírito Santo. E no tempo de Abelardo, essa pré-renascença que foi o Renascimento do século XII, quando, segundo Paul Vignaux: “Paris parecerá uma nova Atenas”. 

Teríamos de lembrar, ainda, no século VIII, a figura de João Escoto Erígena, esse neoplatônico irlandês, que reconstroi o mundo das ideias a seu modo, embora incorrendo em várias heresias que, graças ao obscurantismo geral, passaram desapercebidas. 

O século XII, portanto, tem o seu precedente no Renascimento Carolíngeo. Abelardo, de certa maneira, é uma consequência de Agostinho e Erígena. A compacta obscuridade medieval não era nem podia ser tão compacta como em geral se pensa. O domínio bárbaro sufocou a civilização greco-romana, mas podemos dizer que as razões seminais da civilização, esparsas no subsolo europeu, acabaram por se mover em direção a nous, abrindo clareiras luminosas nas trevas. Além disso, a verdade é que houve, ao longo de todo o período medieval, uma incessante transmissão da cultura greco-romana. De uma fase para outra, graças aos centros culturais que se conservaram nas penínsulas itálica e ibérica, e particularmente na Irlanda, que chegou mesmo a se transformar segundo expressões da época, num “ninho de filósofos”. 

A luta pelo poder entre a igreja e o Império favorece o desenvolvimento cultural do século XII. Vejam-se o caso das universidades, centros de liberdades de pensamento, protegidos por ambos os poderes que disputavam o prestígio avindo de seu florescimento. Essa disputa permitiu a autonomia universitária. 

O desenvolvimento comercial das regiões italianas do norte, na zona costeira, fazia surgir ali o gérmen perigoso do livre-pensamento. As cruzadas romperam definitivamente o velho arcabouço feudal e abriram as rotas do Oriente. É nesse ambiente, assim renovado, em que sopram ventos novos, arejando as consciências, que Abelardo irrompe, irrequieto e brilhante, cheio de audácia e vaidade, para centralizar na sua figura as tendências de uma nova era. 

 

A CONQUISTA DO MUNDO 

 

Abelardo nasceu perto de Nantes, em 1079, no castelo de Palais, filho do cavaleiro bretão Béranger. Descendia, pois, de uma linhagem nobre e devia ingressar no serviço das armas. Mas Abelardo recusou-se a isso. Preferiu seguir o caminho das letras, que no tempo só era possível através da carreira eclesiástica. 

Estudou primeiro em Laon, com Anselmo, e depois seguiu para Paris, onde se fez aluno de Guilherme de Champeaux. Brigou com o mestre e os condiscípulos, e apesar de muito moço, abriu uma escola em Melun. Fez grande sucesso e transferiu-se para Corbeil, mais próximo da capital, mas a doença o impediu de continuar ensinando. Retirou-se para a sua terra, e poucos anos depois reaparecia em Paris, inscrevendo-se novamente como aluno de Champeaux para um curso de retórica. 

Essa nova temporada em Paris vai ser decisiva para a sua carreira. Abelardo começa por divergir novamente do seu mestre. Era a época da famosa querela dos universais, e Champeaux defendia a posição realista. Abelardo o enfrentou e o constrangeu a abandonar o realismo. A derrota de Champeaux foi a ruína do mestre, mas foi também o inicio da glória do discípulo. Abelardo vê abrir-se aos seus pés o caminho que tanto desejava trilhar: o da conquista do mundo. É jovem, inteligente, senhor de uma terrível dialética, de uma oratória brilhante, belo como um Apolo. As mulheres o admiram e os homens o temem. 

Gilson traça um quadro guerreiro das atividades dialéticas de Abelardo: 

[...] ele mesmo se nos apresenta como um verdadeiro guerreiro, que ataca os mestres, captura os seus auditórios, arrasta-os como uma espécie de despojo, estabelece o cerco das escolas e das cadeiras que ambiciona ocupar; resta sempre em Abelardo qualquer coisa do espírito militar de sua família, e é por um verdadeiro boletim de guerra que ele termina a narração de sua luta com Guilherme de Champeaux. 

Depois da derrota de Champeaux, Abelardo sonha com novas vitórias. Seu coração de guerreiro anseia por outras batalhas, que lhe tragam novos louros. O mundo está a fazer o mesmo com Anselmo, mas o teólogo ilustre de Laon não se deixou vencer. Abelardo instala-se então em Paris, cercado de admiração, respeito e temor, e põe-se a ensinar teologia e filosofia.    

Está ligado à igreja pelo noviciado e espera realizar uma atordoante carreira eclesiástica. Instalou sua escola no alto da colina em que hoje se ergue o templo de Santa Genoveva, e esse foi, como diz Lamartine: “[...] o Monte Aventino de uma multidão de discípulos, que deixavam as escolas antigas para irem ouvir a palavra jovem e audaciosa de Abelardo”.

É ainda Lamartine quem nos dá uma imagem viva e colorida de Abelardo nessa época: 

Tinha então trinta e oito anos. Reinava pela eloquência no espírito dos jovens, pela beleza no olhar das mulheres, pelas poesias líricas nos corações femininos; reinava ainda por suas melodias, cantadas por todas as bocas. Imaginemos em um só homem, reunidos, o primeiro orador, o primeiro filósofo, o primeiro poeta, o primeiro músico de sua época; Antínoo, Cícero, Petrarca, Schubert — numa mesma celebridade viva e moça, e teremos uma ideia da popularidade de Abelardo nesse período de sua vida.

Não é pois de admirar que Cônego Fullbert, da Catedral de Notre Dame, homem de haveres e de prestígio, se entusiasmasse por esse gênio e procurasse conquistá-lo para esposo de sua filha ou sobrinha Heloísa, de dezoito anos, que também já se celebrizara em Paris por sua beleza e sua inteligência. Abelardo passou a residir na casa do cônego e tornou-se professor de Heloísa. 

A acreditarmos no romantismo de Lamartine, todas as belezas e excelências da Terra e do céu se reuniam naquele jovem casal que abrilhantava a casa do velho Fulbert. Heloísa era a mais bela das jovens, Abelardo o mais belo dos homens; ambos inteligentes e cultos, voltados para os esplendores da cultura. Um par de deuses gregos que baixara em Paris, a nova Atenas, para maravilhar os mortais. 

Mas o coração de Abelardo, como o do poeta do soneto célebre, balançava entre dois amores: Heloísa e a glória. A paixão carnal não lhe permitiu refletir muito e fê-lo escolher a jovem com certa precipitação. Casou-se secretamente com ela. Mas recusou-se a tornar público o ato. Temia que a notícia de sua queda, aos pés de uma jovem beleza humana, mesmo sendo a suprema beleza da França, abalasse o seu prestígio de filósofo. Um filósofo que se prezasse não devia entregar-se ao Cupido. 

Diante disso, o velho Fulbert se enfureceu, e com razão. Heloísa compreendia e aprovava os escrúpulos de Abelardo e não queria sacrificá-lo. Mas seu tio, ou pai, como diziam muitos, estava ferido na sua dignidade e no seu orgulho. Fora traído pelo jovem em quem depositava suas maiores esperanças. Proibiu-lhe a entrada em casa, mas Heloísa e Abelardo passaram a encontrar-se às escondidas, o que mais o humilhou e enfureceu. 

Orgulho contra orgulho, vaidade contra vaidade, ao que levaria isso? Apenas Heloísa não abrigava essas negras paixões em seu coração. Amava Abelardo e se sacrificava por ele. Estava disposta a sacrificar-se a vida inteira, contentando-se em ver o seu deus triunfar sobre o mundo. Mas Paris encheu-se da notícia: Abelardo se rendera aos encantos de Heloísa. Os adversários do filósofo não vacilaram em acusá-lo de fraqueza. Era um novo Sansão, que sacrificara sua força a uma nova Dalila. 

Vencido pelo amor, Abelardo não teria mais o fogo da eloquência que até então o caracterizara. Heloísa reagiu como mulher: sacrificando-se. Espalhou que não estava casada, que apenas admirava e amava Abelardo. Mas o sacrifício de Heloísa implicava também o do velho Fulbert, que não estava disposto a aceitá-lo, e as coisas se complicaram. 

Abelardo cometeu então nova imprudência. Raptou Heloísa e levou-a para Argenteuil, internando-a num monastério, onde ela tomou o véu de noviça, sem pronunciar entretanto o voto irrevogável. Por outro lado, investiu-se também das ordens monásticas. O episódio amoroso estava assim encerrado, sua vaidade satisfeita, e ele pôde voltar gloriosamente à cátedra e aos púlpitos, como um novo vencedor. 

Seus inimigos tremeram diante do furor de suas invectivas, e sua popularidade cresceu. Mas o velho Fulbert não aceitava a mancha que o jovem ardente lançara sobre ele. Uma noite, as portas do quarto de Abelardo foram abertas por mãos misteriosas. Consta que o próprio Fulbert guiava a malta de assaltantes, que surpreenderam o filósofo dormindo e o castraram. 

Encerrou-se assim a fase da conquista do mundo. Abelardo, ultrajado e humilhado, pagara bem caro a sua imprudência, a sua enorme vaidade e a sua atitude covarde para com Heloísa. Mas ainda assim não se entregou de todo. Restava-lhe um revide. Ordenou a Heloísa que fizesse o voto irrevogável, para separá-la definitivamente de Fulbert. E ele também o fez, no mesmo dia. 

Dali por diante, entretanto, Abelardo não teve descanso. Percorreu o mundo, de monastério em monastério, perseguido por seus inimigos. Teve de socorrer Heloísa e suas companheiras, certa vez expulsas do convento, que fora tomado por outra ordem religiosa. Por duas vezes foi condenado: uma pelo Concílio de Soissons, em 1121, e outra, por denúncia de São Bernardo, pelo Concílio de Sens, em 1141. Teve de fugir e foi recebido carinhosamente por Pedro, o Venerável, no Priorado de São Marcelo, em Cluny, onde morreu na primavera de 1142. 

Foi inumado no Convento de Paracleto, tendo Heloísa marcado o seu lugar ao lado do corpo do marido. Não obstante, ela ainda viveu por mais vinte e dois anos, só falecendo em 1164. No cemitério de Père Lachaise, em Paris, existe um suposto túmulo de Abelardo e Heloísa. 

Em 1616 foram publicadas em Paris, pela primeira vez, redigidas em latim, as célebres cartas trocadas entre ambos. Schneider, erudito alemão, entende que não se trata de uma troca de correspondência, mas de um trabalho de Abelardo. Bertrand Russel comenta: “Não tenho competência para julgar a exatidão dessa hipótese, mas não vejo nada no caráter de Abelardo que a torne absurda”. A verdade é que essas cartas encerram toda a emoção do terrível drama, e serviram para inspirar Rousseau em sua Julie ou La Nouvelle Héloise.

 

SIC ET NON

 

Abelardo surgiu como um deus, e seu fim foi o de um pobre mortal perseguido pelos homens e pelos fados. Não obstante, marcou a fogo o seu nome no século, que à maneira do XVIII, com Voltaire, devia chamar-se o Século de Abelardo. Como assinala Gilson, a obra do filósofo é de natureza dupla: teológica e filosófica. O que não é de estranhar, pois, na Idade Média, como se sabe, a filosofia estava subordinada à teologia, era a sua serva. Em geral, os filósofos eram teólogos, e estes, filólogos, de tal maneira, que muitas vezes, não sabemos como distingui-los. 

Um dos livros de Abelardo que provocou grande interesse na época, e ainda hoje tem a sua importância histórica é o Sic et Non (Sim e Não), pois exerceu enorme influência sobre o pensamento escolástico, e seu método, diz Gilson, “[…] passou inteiramente para a Suma Teológica de São Tomás de Aquino”. Trata-se de uma coletânea de opiniões contraditórias das escrituras e dos pais da igreja sobre numerosas questões. Abelardo não resolve as contradições, deixando o assunto a critério do leitor. Até hoje, ensaístas e historiadores mostram incompreensão diante desse texto, reprovando a sua forma. Outros compreendem a intenção do autor, e outros exageram ou procuram explicá-la de diversas maneiras. Abelardo continua, assim, a ser objeto de controvérsia. 

Há os que pensam, e isso nos parece mais certo, que Abelardo quis mostrar o absurdo do princípio de autoridade eclesiástica e escriturística dominante no tempo. Gilson entende que Abelardo quis apenas mostrar que “[…] não se deve utilizar arbitrariamente as autoridades em matéria de Teologia”. Acrescenta que não há razão para se pensar que ele quisesse arruinar o princípio de autoridade, pois ele mesmo declara expressamente que desejava apenas propor algumas questões aos leitores, excitando-lhes a imaginação para resolvê-las. Mas é evidente que Abelardo não atiraria uma bomba como essa, em plena Idade Média, sem camuflá-la. Gilson faz vistas grossas sobre o temperamento e a posição de Abelardo, pois é claro que deve enxergar um pouco mais do que demonstra. 

Os chamados “mestres de sentenças” seguiram na esteira de Abelardo, mas, ao que parece, sem a sua intenção combativa, sem a sua tática militar. Pedro Lombardo, Gilberto Porretano, Pierre de Poitiers, os três que completavam com Abelardo “os quatro labirintos de França” aproveitaram o seu método dialético, mas acrescentaram soluções que amenizavam o efeito destruidor do Sic et Non. As sentenças de Lombardo tornaram-se manual escolástico e contribuíram grandemente para a elaboração das Sumas do século XIII, como acentua Ruggiero. Mas a dialética de Abelardo não é a do Sic et Non,onde apenas encontramos uma das provas da sua extraordinária habilidade de estrategista do pensamento. Não fosse ele o que era, e não tivesse o próprio Gilson nos advertido quanto ao seu gênio militar, herdado da linhagem de cavaleiros, poderíamos também nos enganar quanto aos objetivos desse livro. 

Acresce que Abelardo não aceitava a infabilidade dos doutores e dos teólogos. Embora fiel ao princípio medieval de submissão da filosofia à teologia, punha limites a esta. As escrituras ele as considerava infalíveis, pois do contrário estaria bem arrumado. Mas nem por isso deixou de incluir no Sic et Non suas “contradições aparentes”. Fora das escrituras, dizia, até mesmo os apóstolos e os pais da igreja podiam ter errado. Por outro lado, tirar ao Sic et Non o seu sentido evidentemente revolucionário seria converter Abelardo a uma angelitude que ele nunca possuiu, e ao mesmo tempo negar à sua obra o valor de reação ao meio, que é uma das mais altas características. 

 

O DESAFIO DE PORFÍRIO 

 

A dialética de Abelardo está em seus escritos de lógica e de filosofia, e particularmente em seu livro especifico, Dialética. A firmeza de sua exposição, a maneira clara e precisa de colocar os problemas e a habilidade com que os conduz à solução mostram o motivo de seu espantoso sucesso pessoal em Paris. Mas é na questão dos universais que vamos ver a sua extraordinária segurança, numa época de intrincados debates sobre a matéria. 

O desafio de Porfírio, a que atrás nos referimos, ficara no ar. Fizera Porfírio as seguintes perguntas: Os universais existem na realidade ou somente no pensamento? Se existem realmente, são corpóreos ou incorpóreos? São separados das coisas sensíveis, ou ligados a elas? Pois bem, a essas três questões, Abelardo começa, num gesto bem típico de espadachim ou cavaleiro medieval, por acrescentar outra: os gêneros e as espécies terão alguma significação para o pensamento, se os indivíduos que o constituem deixarem de existir? 

Essas questões agitavam a Idade Média, e realmente tinham grande importância, como já vimos a partir de Sócrates. Naquela época a importância do assunto crescia em virtude de suas implicações teológicas. A resposta à primeira pergunta de Porfírio decide o problema. Mas as controvérsias eram infindáveis. 

O realismo, defendido por Champeaux, até que Abelardo o obrigou a recuar, sustentava a realidade dos universais fora das coisas. O nominalismo tomava duas direções: uma, chamada nominalismo extremo, para a qual os universais não eram mais do que nomes, e outra, chamada conceptualismo, segundo a qual os universais não eram mais do que conceitos. Abelardo enfrenta o problema afirmando que os universais não são mais do que o sentido dos nomes, a significação das palavras, o seu conteúdo. Não há universais no sentido platônico, como o queriam os realistas, nem simples nomes, como pretendiam os nominalistas. Abelardo, como se vê, é conceptualista. E nessa posição, o que é mais curioso, sem perceber, e sem que os seus contemporâneos também o tivessem percebido, ele simplesmente volta a Aristóteles. Mas a volta à sua maneira e por suas próprias deduções. 

Com essa solução, Abelardo se encontra em condições de responder às três perguntas de Porfírio e à que ele mesmo acrescentou e que se tornou clássica, como as anteriores. Suas respostas são as seguintes: l.a) Os universais existem no pensamento, mas designam coisas reais. 2.a) Os universais são corpóreos enquanto nomes, palavras, mas não quanto ao sentido. 3. a) Os universais existem de duas maneiras: ligados às coisas sensíveis, quando a elas se referem, e fora do sensível, quando se referem a coisas ou seres não-sensíveis, como Deus e a alma. 4.a) Os universais cessarão de existir como nomes que indicam indivíduos se estes deixarem de existir, mas subsistirão como significados, pois mesmo que não haja mais rosas, poderemos dizer: não existe rosa. 

Não se pode negar a firmeza e clareza com que Abelardo conduziu a controvérsia dos universais a uma solução geral. Gilson, que analisou profundamente os passos que conduzem às conclusões acima, oferece-nos esse esquema das respostas de Abelardo, e adverte que, na resposta à terceira questão, o filósofo quis conciliar Platão e Aristóteles. Isso porque, segundo Aristóteles, as formas só existem no sensível, e para Platão, as formas conservariam sua natureza, mesmo que não estivessem mais ao alcance dos nossos sentidos. Ainda neste passo o senso estratégico de Abelardo se revela, pelo menos num gesto de galanteria cavalheiresca. Ele responde a Porfírio com Platão e Aristóteles, e à maneira de Jesus no caso da moeda, dando a cada qual o que lhe pertence. 

 

VÍCIO E PECADO 

 

A ética de Abelardo, considerada por Ruggiero “[…] a parte mais viva da sua filosofia”, começa também por uma distinção lógica e por um jogo dialético. No seu tratado Scito Teipsum (Conhece-te a ti mesmo), ele estabelece a distinção entre o vício e o pecado, mostrando que o vício é uma inclinação para o mal, e o pecado a aceitação dessa inclinação. Assim sendo, resta-nos a possibilidade de lutar contra o mal, de reagir contra os vícios, evitando os pecados. Por outro lado, o pecado é negativo, pertence ao não-ser. O pecado, pois, não tem substância, e basta o nosso consentimento para que ele se realize. 

Essa dialética do pecado concorda com o ensino evangélico sobre o adultério: “Aquele que olha para uma mulher, cobiçando-a, já no seu coração adulterou com ela”. Basta a intenção para produzir o pecado, que ocorre na alma e não no mundo exterior. Os efeitos exteriores do pecado são sem interesse na economia divina, pois podemos supor esses efeitos sem a intenção pecaminosa, caso em que não haverá pecado. Daí a grande responsabilidade do cristão perante a sua própria consciência: se consentir no vício, na inclinação para o mal, estará tendendo para o não-ser, opondo-se a Deus e contrariando a vontade divina; mas, em sentido contrário, se negar consentimento ao mal, estará agindo no sentido do bem, tendendo para o ser, obedecendo a Deus. 

Surge, porém, uma séria dificuldade. Como saber qual é a intenção boa, a que realmente corresponde à vontade divina? Abelardo se lembra dos que combatiam o cristianismo sacrificando os cristãos. Eles também não faziam isso com boa intenção, ou seja, na intenção de servir a Deus ou aos deuses? Analisando fundamente o problema, conclui que é a intenção que vale, pois a sede do pecado é a alma. Cada criatura é um mundo em que a consciência legisla, com liberdade de ação. Mas a liberdade é relativa ao conhecimento de cada um. Aquele que não conhece o evangelho não pode legislar de acordo com as leis do Senhor. E voltamos assim a outro ponto evangélico: aquele em que Jesus respondeu aos seus interpelantes que, ao dizerem que sabiam, davam realidade ao pecado. Tudo está em saber, pois como pode alguém pecar contra o que ignora? 

O problema do vício e do pecado leva Abelardo a conjeturar sobre um problema de fé que é de grande importância para a compreensão do fato da revelação. Que aconteceria aos pagãos, que não conheceram o evangelho e não puderam cumprir a vontade de Deus? Estariam todos condenados? Abelardo, concluiu, como um universalista em pleno humanismo francês da Renascença, que Deus concedeu a cada povo e a cada época os seus meios de conhecer a verdade. Assim, para os judeus enviou profetas, e para os gregos, filósofos. Uns e outros revelaram as verdades sublimes e indicaram o caminho a seguir. 

 

A NOVA TEOLOGIA

 

Quando deixamos o problema ético para encarar o teológico, verificamos que mais uma vez o professor de lógica da Idade Média, como chamaram a Abelardo, coloca o assunto em termos lógicos. E ao colocá-lo assim, desde logo assume uma atitude revolucionária. Paul Vignaux assinala que, até o momento em que apareceu a Teologia de Abelardo, o sentido dessa palavra era muito diverso do que lhe deu o filósofo. Entretanto, esse novo sentido é o que permanecerá no futuro, e o que ainda hoje conhecemos. 

Entre os latinos, e particularmente os poetas, a palavra teologia queria dizer simplesmente doutrinas pagãs referentes aos deuses. Não se tratava, pois, segundo essa observação de Vignaux, de estudo dos problemas referentes à divindade, mas de sistemas mitológicos mais ou menos estruturados. Em geral: exposição de opiniões e de crenças. Para os medievais, teologia é a leitura sagrada, que mais tarde resulta nas sentenças, esses gérmens de que nascerá a escolástica. Mas quando Abelardo propõe o seu estudo teológico, a palavra teologia assume o seu pleno conteúdo e adquire a dignidade suprema: é uma sacra eruditionis summa, uma suma do saber sagrado, como diz Vignaux. 

Mas ainda uma vez Abelardo voltará a tratar de palavras, de conceitos, de significados. É quando pensa nos conflitos das interpretações, nas contradições dos textos, que ele mesmo soube pôr em evidência no Sic et Non. Então Abelardo acredita que se pudéssemos estabelecer as diferenças de significado das mesmas palavras em autores diversos, muitas contradições deixariam de perturbar-nos. Isso se aplica também ao tempo. Abelardo enfrenta, em pleno mar teológico, um problema de semântica. Mas é evidente que, no trato das palavras, ele vai realmente colocando os problemas fundamentais que procura resolver, e que são os problemas do seu tempo. 

Condenaram-no por haver tentado explicar racionalmente a trindade, e por haver encontrado semelhanças da concepção cristã do deus-trino nos sistemas pagãos. Sua explicação da trindade foi considerada herética. Mas Gilson o defende, afirmando que apesar de confundir filosofia e teologia, Abelardo se mantinha fiel aos princípios da fé cristã. É interessante vermos a enumeração de certos princípios que Abelardo devia seguir para não cair em heresia e condenação. Gilson os enumera: a autoridade é superior à razão; a dialética tem por utilidade principal o esclarecimento das verdades da fé e a refutação dos infiéis, e, por fim, a salvação da alma provém das santas escrituras e não dos livros dos filósofos. 

O mérito de Abelardo está precisamente em nunca haver obedecido cegamente a esses princípios medievais. Sua rebeldia a esse fideísmo obscurantista, que por duas vezes lhe acarretou a condenação dos concílios e a amarga perspectiva da submissão ou da fuga, mostram claramente a sua posição. Aceitando a supremacia da fé, Abelardo nada mais fazia do que se sujeitar ao inevitável. Mas suas tentativas de explicar pela razão até mesmo o dogma supremo da trindade é uma prova de que a sua inteligência poderosa aceitava essas condições com relutância profunda. 

Numa carta a Heloísa, faz Abelardo esta confissão que ficou célebre: “Não quero ser filósofo contradizendo São Paulo, nem ser um Aristóteles para me separar do Cristo, porque não há outro nome sob o céu, pelo qual eu me possa salvar. A pedra sobre a qual fundei a minha consciência é aquela sobre a qual o Cristo fundou a sua Igreja”. Essas palavras são interpretadas por uma adesão plena ao princípio de submissão da filosofia à teologia. Mas quando sabemos de sua vida e suas lutas, compreendemos que não devem ser bem assim. Porque há uma distância enorme entre o não querer contradizer São Paulo e separar-se do Cristo, e não querer contradizer os dogmas com a indagação filosófica. 

Aliás, Abelardo não vacilou em fazê-lo. Sua fé no Cristo parece indiscutível, sua crença em Deus, e mesmo na trindade, não oferece pontos duvidosos. Mas sua sujeição aos princípios opressivos do medievalismo é contraditada por numerosas tentativas de romper o cerco e proclamar o seu direito de pensar com liberdade. É nesse sentido que Abelardo, embora centralizando em sua figura e em sua vida o drama do pensamento medieval, representa também um avanço sobre o futuro. Depois de Abelardo, só restava aos séculos seguintes, do XIII ao XIV, a expectativa da Renascença. Porque a escolástica ainda iria formular a sua síntese final, mas Abelardo já indicara, por seus anseios incontidos e seus rasgos geniais, os caminhos da superação teológica. 

É exatamente no século seguinte, no XIII, que a escolástica vai alcançar o seu máximo esplendor. Mas o clarão poderoso será como um relâmpago, trazendo em si mesmo os elementos do seu declínio. Figuras como o Papa Inocêncio III brilharão no cenário político, e seu pupilo, o Imperador Frederico II, da Alemanha, marcarão época na história. Francisco de Assis surgirá como uma nova mensagem de santidade e pureza, mas seu sucessor Elias será a contrafação do seu trabalho e do seu espírito. As lutas da igreja contra os hereges tornam-se extremamente violentas, assinaladas por terríveis massacres em nome de Cristo. Em 1233, o Papa Gregório IX funda a Inquisição. E é nesse ambiente de tremendas contradições, em que as trevas e as luzes se misturam, que Tomás de Aquino realizará afinal a sua síntese, fazendo de sua obra o delta gigantesco de todas as confluências dos séculos anteriores. 

Nessa obra, que os papas Leão XIII e Pio XI consagrarão como doutrina da igreja, vemos estabelecida a relação subordinativa da filosofia à teologia. A distinção entre razão e fé implica o problema de esclarecimento da fé pela razão, que Abelardo procurara agitar tantas vezes. Por isso, o problema da filosofia tomista, colocado por São Tomás de Aquino, é exatamente o da distinção e do acordo entre elas. A distinção é fácil: a filosofia operando na razão permanecerá no campo da luz natural; a teologia, fundada na revelação, sob a autoridade de Deus, conterá artigos de fé, que devem ser aceitos, mesmo contra a razão. 

Fácil compreendermos a posição da filosofia nesse acordo. Seu papel é o de “serva da teologia”. Ela deve esclarecer racionalmente os princípios da fé para ajudar a teologia, mas nunca deverá esquecer as suas limitações de luz natural, nascida na Terra. Quando se tratar dos grandes princípios da fé, a filosofia só poderá tratá-los para chegar às mesmas conclusões já estabelecidas pela revelação. Porque a verdade é uma só, e a verdade indicada pela fé, revelada por Deus, não pode ser contraditada pela frágil luz da razão humana. Como vemos, Abelardo, qual um rato na ratoeira, havia tentado, um século antes, romper uma prisão que muitos outros trabalhavam para fortificar. Mas seu sucessor não se fará tardar. Dois séculos mais, e ele surgirá na arena.

 

Texto publicado originalmente no livro OS FILÓSOFOS, Ed. Paidéia.


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