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SÓCRATES

(Aprox. 469 a.C. — 399 a.C.)

 

 

Sócrates não representa uma contrarrevolução na filosofia, como parece à primeira vista, mas um desenvolvimento necessário da revolução sofística. Os revolucionários muitas vezes se extraviam na ação, e as revoluções acabam na estagnação que haviam combatido ou na dispersão espiritual de suas forças. Por outro lado, as revoluções não começam nunca na plena compreensão de seus objetivos. Estes vão se delineando aos poucos, na proporção da marcha, e não raro vão ser mais bem percebidos por espíritos libertos da ortodoxia revolucionária. Foi o que aconteceu com os sofistas, cujo movimento degenerou na esterilidade da simples tagarelice por falta mesmo de mais perfeita visão inicial.

A figura de Sócrates aparece no momento oportuno. Tendo desejado na juventude tornar-se fisiólogo, foi certamente despertado pelos sofistas para a compreensão de que existiam coisas mais urgentes a tratar. Sua atividade se desenvolveu, como diz Robin, "[…] no mesmo meio social, respondendo às mesmas necessidades intelectuais e morais" que os sofistas enfrentavam. Chegou mesmo a ser confundido com eles, como vemos em As Nuvens, de Aristófanes. E como, por outro lado, já vimos ao tratar de Protágoras, em muitos pontos Sócrates se apresenta mais como um êmulo do que um adversário do pai da sofística. De qualquer maneira, a verdade incontestável é que ambos pertenceram ao mesmo movimento do iluminismo grego.

Um esclarecimento de Windelband nos ajudará a situar melhor a figura e a atividade de Sócrates na história da filosofia. Já vimos que Pitágoras nos apresenta a filosofia como "o amor da sabedoria", e que os sofistas a transformam em exibição da sabedoria. Windelband, evocando O Banquete, de Platão, e a definição socrática do amor, que ali aparece, como intermediário entre sabedoria e ignorância, conclui: "Nesta passagem, a expressão filosofia adquire sua acepção apropriada, de afã de saber." Esta evolução semântica nos mostra com bastante clareza a posição de Sócrates: um renovador, no melhor sentido do termo.

Ao contrário de Protágoras, que viera da Trácia, Sócrates era filho da Ática. Seu pai era o escultor Sofronisco, e ele mesmo fora também escultor, seguindo a carreira paterna, conforme os costumes antigos. Sua mãe era a parteira Fenareta, e veremos que, noutro sentido, Sócrates também seguiu o ofício da mãe. Mostrou-se, assim, inteiramente fiel às tradições da família. E talvez seja esta uma indicação valiosa da orientação do seu espírito, que apesar de inovador, guardou sempre a fidelidade ao passado. Veremos, mais tarde, que não se tratava da fidelidade vulgar, que consiste em repetição, mas de uma fidelidade em sentido mais profundo, levando-o a transferir as heranças para um plano superior.

Nascido em Alopece em cerca do ano 469 a.C., viveu até 399 a.C., quando o condenaram a tomar cicuta em episódio tão conhecido até mesmo das pessoas pouco afeitas aos problemas filosóficos. Viveu, portanto, setenta anos. Aparentemente era um homem comum, despreocupado, da classe média, de posses moderadas, que lhe permitiam discutir à vontade com seus concidadãos, em largos ócios, sobre os principais temas da época. Platão no-lo descreve a partir de dois ângulos: o exterior e o interior. No primeiro, temos esse tipo de burguês tranquilo, que se completa por um rosto de traços rudes, sob ampla calva, de nariz grosso e queixo voluntarioso, olhos arregalados. No segundo, temos o espírito ardente e estranho que salta dessa aparência vulgar à menor aproximação. Esse espírito é que atrai os atenienses e converte o bom Sócrates popular no maior filósofo grego, e esse espírito é que o arrastará à morte, como aconteceu com o seu antecessor Protágoras.   

Mas, por falarmos no sofista, lembremos que ele fugiu da condenação, enquanto Sócrates recusou-se a fazê-lo. Ambos morreram: um na fuga, por naufrágio do navio, e o outro no cárcere, com extraordinária serenidade, zombando dos juízes que o condenavam. Ambos estavam bem velhos e haviam ensinado durante muitos anos. Qual seria o motivo dessa atitude contraditória em face da morte? Parece-nos que pelo menos em parte podemos supô-lo: a mesma contradição em face da vida. Sim, pois Protágoras não acreditava nos deuses, e Sócrates se considerava a serviço dos deuses. Para o primeiro, a morte era o mergulho no desconhecido; para o segundo, era a partida para uma vida melhor. Protágoras foi coerente, tentando salvar o bem que possuía, concretamente, no mundo; e Sócrates não o foi menos, recusando-se a perder, por uma fuga à condenação legal, o bem maior que possuiria, logo mais, além do mundo.

A posição espiritualista de Sócrates equivale também a um desenvolvimento do ceticismo sofístico. Examinemos rapidamente os termos do problema. Os fisiólogos partiram de uma tradição religiosa e modelaram suas escolas, como vimos em Pitágoras, pelo sistema órfico das confrarias. Tales sustentava o princípio místico, segundo o qual o mundo se originara da água, o mesmo princípio que encontramos na gênese judaica, sobre o qual modelamos a nossa tradição religiosa. A tradição filosófica herdara, pois, o misticismo religioso do passado, e contra essa herança se levantaram os sofistas, a começar de Protágoras. Este, porém, não negava a existência dos deuses, limitando-se a pô-la em dúvida. Sócrates retoma a dúvida protagórica, voltando-a contra os mitos, mas admitindo a existência dos deuses em sentido espiritual.

É evidente a linha evolutiva do pensamento iluminista grego. Duvidando dos deuses, Protágoras duvidava também dos homens e dos seus conhecimentos, inclusive dos conhecimentos matemáticos. Foi a atitude que Descartes também assumiu, de maneira intencional, quando muito mais tarde sentiu a necessidade de voltar-se contra a tradição escolástica. A dúvida de Descartes, por sua própria natureza de atitude consciente, foi superada pelo filósofo. Mas a de Protágoras, antes impulsiva do que consciente, permaneceu ao longo de toda a existência do sofista. Sócrates representa, nesse processo histórico, a fase do cogito. Foi ele quem mergulhou no mais recôndito do ser, para encontrar a essência do homem, e no mais profundo dessa essência reencontrar a divindade. Protágoras e Sócrates desenvolvem o processo do cogito em câmara lenta, através da história. Descartes atinge a síntese num ápice, sozinho, porque atrás dele já se estendia o longo caminho do pensamento percorrido pelos gregos, pelos romanos e por toda a Idade Média.

Essa posição, aparentemente antinômica mas no fundo complementar, de Protágoras e Sócrates, estende-se, a partir da crença dos deuses, a todos os demais problemas sofísticos. Não tendo uma base sólida para sua concepção do mundo e da vida, Protágoras duvidava de tudo e não buscava a verdade com o devido interesse, pois nem mesmo aceitava a possibilidade de se poder atingi-la. Apoiando-se na certeza da vida espiritual e da existência dos deuses, Sócrates acreditava nos valores humanos e na eficácia de uma busca sincera da verdade. Posições opostas, mas ao mesmo tempo complementares, desde que a vejamos no processo do desenvolvimento histórico.E mais curioso se torna esse desenvolvimento quando passamos do plano do pensamento puro, da razão, em funcionamento lógico, para o plano do psiquismo, em suas interrelações de pensamento-afetividade-vontade.Encontramos então, em Protágoras, o analista frio, racional, que se serve da inteligência como instrumento para medir o mundo, o homo mensura. Mas em Sócrates encontramos o homo sapiens, num sentido quase bergsoniano, usando a intuição para captar a realidade em sua fluidez não-espacial.

Foi por isso, certamente, que a Pitonisa do Oráculo de Delfos, consultada sobre Sócrates, respondeu, em nome de Apolo, que ele era o mais sábio dos homens. Desde que soube disso, o filósofo se considerou, informa Robin, “[…] como estando a serviço de Apolo, investido por ele de uma missão, que era a de procurar a razão dessa resposta”. Julgando-se destituído de sabedoria, Sócrates procura analisar os outros, os que se dizem sábios. E por fim descobre que a supremacia do seu saber está apenas no fato de que ele sabe que nada sabe, enquanto os outros julgam saber o que não sabem.

E é neste momento que Sócrates se volta contra os sofistas, que tudo sabem. O ceticismo de Protágoras encontra em Sócrates o seu verdadeiro sentido. E podemos dizer que a sofística formula em Sócrates a sua autocrítica. 

 

LOUCURA E CATALEPSIA 

 

No Banquete, de Platão, vemos Sócrates dirigir-se à casa de Agáton, na companhia de Aristodemo. Ao entrar na casa, porém, este verifica que Sócrates desaparecera. Agáton manda um escravo à procura do filósofo, e o escravo volta informando que Sócrates estava parado, imóvel, junto ao portão de uma casa vizinha, e nem sequer atendera aos seus chamados. Agáton diz ao escravo que volte e traga o filósofo. Mas Aristodemo intervém:

— Não, Agáton! Deixa-o em paz. É costume dele apartar-se às vezes de tudo e assim ficar, meditando por muito tempo, imóvel e recolhido. É um velho costume. Ordena que não o estorvem e o deixem em paz.

Mais tarde Sócrates entra, já em meio ao jantar. Agáton o convida para deitar-se ao seu lado, acrescentando:

— [...] pois quero saborear um pouco da sabedoria que adquiriste ao meditar sob o alpendre. É claro que a adquiriste e que a possuís, porque ainda não terias saído de lá, se assim não fosse.

– Ótimo seria, caro Agáton, — responde Sócrates — se a sabedoria fosse uma coisa que pudesse passar, por simples contato, de quem a tem para quem não a tem.

No escandaloso discurso do bêbado Alcibíades, já no fim do banquete, ouvimos essa história sobre a presença de Sócrates no cerco de Potidéia:

— Uma vez ele se pôs a meditar, e ficou de pé, no mesmo lugar, desde a madrugada. Como não encontrasse solução para o que pensava, não desistiu, mas continuou imóvel, absorvido na reflexão... Veio o meio-dia, e os soldados o observaram. E diziam uns aos outros, pasmados, que Sócrates se conservava naquela posição desde a alvorada, pensando. Enfim, uns jônios — já era pelo entardecer e todos haviam jantado — arrastaram para fora suas esteiras, para dormir ao relento, pois era verão, e também para observar se Sócrates passaria ali imóvel a noite inteira. Pois ele ali permaneceu, naquela posição, até a aurora e o nascer do sol; e então fez sua prece a Hélio, e se foi.

Além destes momentos de êxtase, ou de profunda imersão no seu mundo mental, Sócrates referia-se a um demônio que o acompanhava (daimonion), e que, segundo vemos no Fedro, sempre o impede de fazer o que deseja. Na Apologia, Platão o faz declarar: "Tal fato começou comigo em criança. Uma voz ressoa em mim, e toda vez que ela se manifesta me desvia daquilo que estou para fazer". As interpretações desse demônio socrático são as mais variadas, e muitas delas bastante pitorescas, como as de certos psiquiatras modernos. Há mesmo quem deseje fazer a psicanálise de Sócrates com base nesse caso do demônio.

Bertrand Russell, comentando as longas meditações de Sócrates e as referências ao seu demônio, declara simplesmente: “Joana D’Arc era inspirada por vezes, sintoma comum de loucura. Sócrates era sujeito a transes catalépticos". É possível que Protágoras pensasse mais ou menos assim a respeito dos mesmos casos. Como vemos, a oposição da inteligência analítica à intuição psíquica não era um privilégio dos gregos.                                          

E pouco importa que Joana D'Arc seja considerada louca só por ouvir as suas vozes, ou que Sócrates seja acusado de anormal por ser capaz de se absorver em seus pensamentos e também de ouvir o seu demônio. Pois não há um médico francês, o Doutor Binet Sanglé, que pretendeu provar num livro curioso a loucura de Jesus?          

Pitágoras já dizia que a Terra é a morada da opinião, e que esta corresponde ao número dois, pois voa por toda parte, como as borboletas.

 

DIFUSÃO DA LOUCURA

 

A loucura socrática era terrivelmente contagiosa. Tanto mais que Sócrates, à maneira de Jesus, uma vez convencido de sua missão, resolveu difundi-la o mais possível. Entende Robin, com muita razão, que o filósofo já devia ter adquirido a autoridade de um mestre quando um de seus admiradores fez a consulta famosa ao Oráculo de Delfos. E acrescenta que Sócrates, depois de haver constatado a absoluta inconsciência da ignorância nos outros, resolveu despertar nesses inconscientes o desejo da reflexão crítica. Em outras palavras, podemos dizer que Sócrates, tendo aplicado a si mesmo o conselho do Oráculo, “Conhece-te a ti mesmo”, compreendeu que a sua missão, dali por diante, era aplicá-lo aos outros.

Começa nesse momento a difusão da perigosa loucura socrática, tão perigosa como a de Jesus, que destruiu o mundo antigo minando pela base o poderio romano — como dizia Feuerbach e, mais tarde, Victor Hugo — e até hoje continua a tresloucar os homens. Tampouco a loucura socrática pôde ser detida pelos séculos. Contagiou Atenas, propagou-se pela Grécia, projetou-se depois em toda a era helenística, invadiu o mundo e continua a minar a sensatez das boas criaturas, nos mais tranquilos e sensatos recantos do planeta.

Sócrates compreendeu que a loucura inicial dos sofistas havia degenerado rapidamente em perigosa forma de sensatez. Esse perigo é enorme, principalmente no seio de um povo como o grego, formado ao fogo das paixões mediterrâneas. A sofística deixara de ser uma reação ao dogmatismo tradicional para tornar-se também dogmática. Os sofistas, acomodando-se à vida, tornaram-se simples mestres de acomodação. Ensinavam os jovens a conquistar e a defender suas posições, a aturdir os adversários em defesa própria e a se blasonar de uma sabedoria que não possuíam.

Sócrates compreendeu que a sua missão era a de transtornar esse meio estagnado, onde as poças verdes da vaidade, da ignorância e dos interesses criados se haviam tornado miasmáticas. E para cumprir essa missão, que Apolo lhe dera e o seu demônio confirmava, começou a fazer aos outros as perguntas que havia feito a si mesmo, aquelas terríveis perguntas que Protágoras aplicara ao início da revolução sofística para destruir a muralha do pretenso saber acumulado.

Ao contrário dos sofistas, que ensinavam por dinheiro, e dos antigos filósofos, que organizavam suas escolas em forma de confrarias, Sócrates resolveu trabalhar como franco-atirador. Não se filiou a nenhuma corrente filosófica, não fundou escola nem pretendeu cobrar coisa alguma pelo seu ensino. Não fosse a missão especial de que estava investido poderíamos hoje acusá-lo de reacionário, de inimigo da honrada e malsinada classe dos professores. Mas Sócrates vivia numa sociedade muito diferente da nossa, e os sofistas do seu tempo haviam exagerado na caça aos jovens ricos, um pouco mais do que as belas atrizes de hoje. Tudo isso, mais a sua condição de homem remediado que não sofria o castigo adâmico de ganhar o pão com o Ur do rosto justificam a sua atitude.

É curioso notarmos que a democracia ateniense reagiu contra Sócrates e o condenou porque ninguém mais democrático do que ele na sua tentativa de difundir a divina loucura. Muito antes de que o apóstolo Paulo oferecesse ao homem a terceira dimensão espiritual, fazendo-o compreender a paternidade de Deus e a fraternidade universal, segundo proclama Denis de Rougemont, já o filósofo ateniense a utilizava por conta própria. Para usarmos uma expressão bíblica, ele não se deixava levar por respeitos humanos. Considerava a todos, sem qualquer distinção de classe ou de raça, como criaturas passíveis de sofrer o contágio da sua forma especial de loucura, propiciada pelos deuses.

Sócrates não precisava de um local apropriado para ensinar. À maneira de Jesus, pregava nas ruas e nas praças, como nos ginásios e palestras, onde recrutava os jovens. Particularmente no Ginásio do Liceu, próximo ao Templo de Apolo, no mesmo local onde mais tarde Aristóteles estabeleceria a sua famosa escola. “Perguntador infatigável […]”, diz Robin, “[…] sua preferência pela conversação, que associa o interlocutor ao trabalho de pesquisa, não o impede de fazer também longos discursos e de praticar a leitura comentada dos poetas”. Apesar disso, não é propriamente um mestre. É um companheiro de estudos, o amigo mais velho e experiente, que reúne em seu redor um círculo familiar para debates e pesquisas. Pertencem a esse círculo pessoas de diferentes classes e idades, atenienses e estrangeiros, e muitos destes vem a Atenas especialmente para conversar com o filósofo de tempos em tempos.    Aliás, os "familiares" de Sócrates não formam apenas um círculo, mas vários. E há de tudo entre eles. Robin nos lembra que elementos conhecidamente filiados a diferentes escolas filosóficas o frequentam. E cita os seguintes: Euclides, eleático; Símias, Cebes e Fedondes, pitagóricos; Antístenes e Aristipo, alunos dos sofistas. Ao mesmo tempo, os jovens ricos que constituem a variegada caça ateniense dos sofistas também se aproximam de Sócrates, debatem com ele os mais variados problemas, submetem-se aos seus terríveis questionários. Entre eles, Platão, Xenofonte, Alcibíades. Os círculos socráticos, como se vê, são amplos, variados, abertos democraticamente a todos. Neles já podemos ver a antecipação dos diferentes caminhos que o pensamento de Sócrates tomará no futuro, através de escolas não raro contraditórias.

A difusão da loucura não exige formalismos. Porque a loucura de Sócrates é divina, oposta à loucura humana, que tudo pretende saber e que por isso mesmo se reveste de formas sutis para se difundir sem se desfigurar. Platão e Xenofonte, o poeta-filósofo e o general de cavalaria, os dois discípulos de Sócrates que nos transmitiram o maior volume de informações sobre ele, mostram-nos a sua intimidade com pessoas de todas as classes. Xenofonte conta, por exemplo, no Memoráveis, que Crítias, líder dos Trinta Tiranos, proibindo Sócrates de ensinar aos jovens lhe disse: "É melhor que te ocupes dos teus sapateiros, carpinteiros e caldeireiros!". Não havia, pois, necessidade de preparação especial para pertencer aos círculos socráticos. Porque todos os homens, pelo simples fato de serem homens, já traziam consigo a verdade que o filósofo lhes extrairia do íntimo.

 

O ESCULTOR E A PARTEIRA

 

Os homens aparecem, aos olhos de Sócrates, como possibilidades de sabedoria, ou como sabedoria em potência. Mais tarde, um seu discípulo indireto, um seu neto espiritual, Aristóteles, explicará como a sabedoria pode passar de potência a ato. Mas antes, bem antes dessas explicações minuciosas, Sócrates se incumbirá de fazer o milagre. Para isso, criará um método especial, que o identificará ao mesmo tempo com a tradição paterna e materna. Por um lado, ele se fará o escultor de homens, não mais arrancando da pedra as suas imagens, mas do espírito. Por outro, será um continuador da mãe, ajudando através da maiêutica o nascimento da verdade, como Fenareta ajudava o das crianças.

Para esculpir os espíritos é necessário um cinzel verbal. E Sócrates o fabrica: seu cabo é o conceito, seu gume é a ironia, sua lâmina penetrante é a maiêutica. Mas esse mesmo instrumento serve também aos partos do espírito, pois é evidente a semelhança entre arrancar da pedra uma imagem ou do ventre uma criatura. Dotado desse instrumento, dessa técnica espiritual, Sócrates começa a agir. Primeiro, esculpiu-se a si mesmo, provocou o parto do seu próprio espírito. Depois, saiu ao socorro dos outros, no cumprimento da missão que indiretamente o Oráculo lhe confiaria.

Os fisiólogos queriam criar uma ciência geral do universo, partindo do conhecimento das coisas. Mas como conhecemos as coisas sem nos conhecermos a nós mesmos? Sócrates nega a importância dessa ciência geral, ou pelo menos a sua oportunidade. Depois dele, a partir de suas ideias, e particularmente da sua descoberta do conceito, seu discípulo Platão restabelecerá o prestígio do geral. Logo depois, porém, Aristóteles o vingará, restabelecendo o prestígio do particular, como investigador naturalista. Mas o particular, para Sócrates, começará no homem, ou melhor, na cabeça do homem, nessa caixa de surpresa em que se esconde o conceito.

A ciência de Sócrates não se refere às coisas particulares da natureza, mas ao particularismo humano. Sócrates concorda com os sofistas: o que importa é o homem. E a primeira coisa que ele vê no homem não é o seu corpo, como o fizeram os físicos ou médicos, nem as suas ambições, como o fizeram os sofistas, mas as suas ideias. O homem não vive como os animais, impulsionado pelas necessidades orgânicas, mas de outra maneira, guiado pelas ideias. Estas, pois, são a chave do problema humano, da ciência do particular que é preciso construir. Existem ideias do bem e do mal, do belo e do feio, do justo e do injusto, da natureza e do social — tão discutidas pelos sofistas — do vício e da virtude, também tão debatidas. Essas ideias são imãs, freios, alavancas, rodas, engrenagens do espírito. Precisamos então conhecê-las, saber o que são e aprender a utilizá-las.

Eis a chave do método socrático, eis a descoberta maravilhosa que, como acentua René Hubert, deu origem ao racionalismo filosófico, à ciência positiva, às técnicas experimentais, à moral independente e, além de tudo isso, à pedagogia consciencial e a todo o conteúdo do humanismo europeu. Eis, enfim, o conceito, essa abstração da coisa, essa realidade subjetiva que constitui o mundo verdadeiro do homem sobreposto ao concreto, em que vive o animal.

O conceito é uma conquista da evolução psíquica. E o momento em que a mente se liberta do objeto, criando o seu próprio universo. Uma vez compreendida a sua função, conhecido o seu valor, o espírito se livra do peso da matéria. A antinomia existencial se define: de um lado está a coisa, o objeto, a matéria na sua diversidade, na sua confusão; de outro, está o espírito que percebe, que capta, que apreende essa diversidade; e no meio, entre um e outro está o conceito, representação pura do impuro, imagem perfeita do imperfeito, simbologia homogênea do heterogêneo; intermediário entre o ser e o não-ser, chave de controle de toda a realidade.

Platão estará cheio de razão, mais tarde, ao considerar o conceito como a verdadeira realidade, pois, ao menos para o homem, o mundo do conceito é o mundo real.                          

Descoberto o conceito, compreendemos o valor das palavras, que são as suas representações no concreto. Sócrates aplica então o gume do cinzel na polpa movediça do concreto. Emprega a ironia. Os homens falam muito, repetem palavras, encadeiam frases. O processo verbal é como um rio, correndo sem cessar. Sócrates o fere em rápidas cutiladas, rompendo a leve película que envolve as palavras. Se alguém fala em justiça, ele logo pergunta: "Que é isso?". E se o interpelado responde com novo enxurro de palavras, ele insiste nas perguntas, exige definições, quer que os conceitos apareçam por trás da ganga oratória. As palavras já não podem disfarçar o pensamento, as frases não devem esconder a verdade.

A razão, que em Protágoras era ainda um tateio na superfície das coisas, torna-se agora um instrumento agudo de penetração no real. E dessa penetração surge a maiêutica, o momento supremo do impacto socrático no espírito. Atingido o conceito através da palavra, a consciência se ilumina, porque o pensamento se coordena e harmoniza. A limpidez conceitual da consciência determina então a retidão moral, porque as ideias dirigem a conduta.

É assim que Sócrates, o escultor, transfere da pedra para o espírito a arte paterna. E é assim também que Sócrates, o parteiro, faz que as criaturas venham à luz, rompendo o ventre da ignorância. O espírito assim esculpido, a consciência liberta do véu ilusório das palavras podem ver-se a si mesmos. O conselho do Oráculo de Delfos já não será tão difícil de compreender e de seguir: “conhece-te a ti mesmo”. Sócrates encontrou a técnica do conhecimento próprio, o que vale dizer, da libertação humana.

 

O SABER E A VIRTUDE 

 

A condição da virtude é, portanto, o saber. O homem reto é o que sabe. Como se pode ser bom sem saber o que é o bem? Está nisso todo o valor do conceito. Temos primeiro de inquirir qual a natureza do bem. E desse inquérito resulta que o particular, o bem pessoal, o bem do homem que busca a felicidade, transforma-se naturalmente no bem geral. Porque o bem é uma ideia, uma formulação abstrata, que parte da indução do particular, para a síntese do conhecimento. 

Conhecer-nos a nós mesmos é saber o que somos, o que temos em nós, a que aspiramos. Ora, o que todos nós desejamos é a felicidade. Mas o que é a felicidade? Aí está novamente o conceito, a desafiar a nossa argúcia. Todos falam essa palavra, todos pensam nela, todos a desejam. Mas saberão o que desejam? Uns acreditam que a felicidade é o dinheiro, e correm loucamente atrás dele, para afinal verificarem que estavam em caminho errado. Outros pensam que a felicidade é o poder, a glória, a consideração alheia. Entretanto, o homem que descobriu o conceito sabe que a felicidade é uma ideia autônoma, que tem o seu próprio sentido e por isso mesmo não se confunde com outras ideias. A felicidade é um conceito. E esse conceito representa um estado do ser, uma situação humana, uma condição íntima, que nada tem a ver com a quantidade de dinheiro ou de poder que tenhamos em mãos.

Para sermos felizes, precisamos antes de mais nada conhecer a felicidade, saber o que realmente corresponde na prática essa ideia. Mas para conhecer a felicidade precisamos primeiramente conhecer a essência humana, a nossa própria natureza como tal. Ora, essa essência aspira à libertação. Nossa natureza é a própria liberdade. Assim, quando corremos atrás do dinheiro, é porque pensamos que ele nos dá liberdade. Ao atingi-lo, verificamos que, pelo contrário, o dinheiro pesa sobre nós. Isso nos leva a compreender que ninguém age mal por querer. Pelo contrário, o mal decorre da ignorância, pois é praticado na intenção de produzir o bem. Da mesma maneira, chegamos à conclusão de que a virtude é a ciência.

Mas o conhecimento, ao menos para Sócrates, não decorre apenas da ilustração própria. Há outro fator, que age durante toda a sua vida, desde criança, mesmo antes que ele houvesse descoberto a sua técnica, para guiá-lo ao bem. É o seu demônio, que sempre o adverte, quando ele vai dar um mau passo. Windelband entende que esse demônio compromete o racionalismo socrático. Vêmo-lo, entretanto, sempre em ação. E mesmo na Apologia, quando pretende proclamar que a morte é um bem e não um mal, Sócrates se lembra dele:

Aquela minha voz habitual do demônio, em todos os tempos passados me era sempre frequente, e se opunha ainda nos mais pequeninos casos, cada vez que fosse para fazer alguma coisa que não estivesse muito bem. Ora, aconteceram-me estas coisas, que vós mesmos estais vendo, e que, decerto, alguns julgariam e considerariam o extremo dos males. Pois bem, o sinal do deus não se me opôs, nem esta manhã, ao sair de casa, nem quando vim aqui, ao tribunal, nem durante todo o discurso. Em todo este processo, não se opôs uma só vez, nem a um ato nem a palavra alguma.

Qual suponho que seja a causa? Eu vo-lo direi: em verdade este meu caso pode ser um bem, e estamos longe de julgar retamente, os que pensamos que a morte é um mal. E disso tenho uma grande prova: que, por muito menos, o signo habitual, o meu demônio, se me teria oposto, se não fosse para fazer alguma coisa de bem.

Seja, pois, este demônio socrático uma voz interna proveniente da intuição, uma voz divina como a do Oráculo de Delfos, “[…] um puro instinto natural profético”, como quer Windelband, ou uma entidade intermediária entre os deuses e os homens, como na concepção de Hesíodo, a verdade é que não se pode negar a sua importância no processo ético do ensino de Sócrates.

Windelband chega a afirmar que o filósofo “[…] considerava esse demônio como um dote puramente pessoal, ou seja, que não lhe reconhecia importância alguma para a regulamentação ética da vida humana em geral”. Bastariam os trechos da Apologia, que reproduzimos acima, para mostrar o contrário. Sócrates estava sempre atento à voz do demônio, e declara que ela teria modificado a sua atitude, até mesmo nesse momento supremo da sua vida, quando caminhava jubilosamente para a morte.

Como reduzir um fato dessa natureza aos limites estreitos de “um dote pessoal”, sem importância para a vida humana? Como aceitar, logo de início, a exceção absurda, ilógica e anticientífica de “um dote pessoal” exclusivo para Sócrates, que de certa maneira o apartaria da espécie? Os preconceitos culturais que agem na posição estranha de Windelband são também responsáveis pelo esquecimento quase geral desse elemento importante da ética socrática. A verdade histórica nos manda reconhecer a presença do “demônio” na aquisição do conhecimento, da ciência que produzirá a virtude, como elemento tão importante como a própria experiência pessoal do homem na vida, ou como esse outro elemento que Sócrates chamará amor, e que em termos sociológicos chamaríamos hoje por outras palavras, mais técnicas e menos ricas ou expressivas.

O saber e a virtude nunca revelaram tão profundamente a sua ligação quanto no próprio trabalho da sua pesquisa em comum, através do diálogo. Nessa pesquisa criava-se uma situação especial, em que os espíritos se ajudavam mutuamente. Formava-se um ambiente de interesse recíproco, um meio de permutas psíquicas — não apenas intelectual, mas também afetivo e volitivo —, em que o amor agia como estímulo na descoberta da verdade. Dessa maneira, a ligação do saber com a virtude não era, como supõem alguns autores modernos, um ponto de confusão, de falta de clareza ou definição na teoria socrática, mas uma decorrência lógica do desenvolvimento ético, que não pode efetuar-se sem o pressuposto do desenvolvimento intelectual. O racionalismo grego nunca atingiu maior altura. Hubert acentua: "A cultura intelectual não aparece apenas como meio de cultura ética, mas como estritamente idêntica a ela".

Sócrates transformava, assim, a antiga camaradagem grega, elemento fundamental da educação épica, num sistema de amizade intelectual. O poder educativo do amor, que os gregos levaram ao exagero da pederastia, era aplicado por ele num sentido mais amplo e mais lógico. Em lugar dos famosos "pares de amantes", das parelhas do "batalhão sagrado", que mais tarde constituiriam uma realidade histórica, Sócrates propunha os grupos de amantes, cujo amor se traduziria no esclarecimento mútuo.

Conhecemos a história do exército criado por Górgidas, nos fins do IV século, no qual se destaca o "batalhão sagrado", composto exclusivamente por amantes e amados, sob o comando da parelha Pelópidas e Epaminondas. Esse batalhão obteve para os tebanos a vitória de Leuctras, em 371. Para compreendermos a razão desse fato, convém atentarmos para este trecho do discurso de Fedro, no Banquete:

 Nunca um indivíduo se mostra mais confuso do que quando por via de alguma falta é surpreendido pela pessoa amada. De sorte que se fosse possível formar, por algum modo, um Estado ou um exército exclusivamente de amantes e amados, assim se obteria uma constituição política insuperável, pois ninguém faria o que fosse desonesto, e todos, naturalmente, se estimulariam na prática de belas coisas. Na luta, um desses exércitos, mesmo reduzido, obteria vitórias sobre todos os inimigos, pois se um soldado às vezes suporta que os seus companheiros o vejam largar as armas e desertar, jamais desejaria que o seu amado o visse fugir, e a isso preferiria a morte. Além disso, ninguém é tão covarde que sucumba ao medo, fuja e não auxilie ao seu amado, abandonando-o aos perigos. Eros inspira coragem aos seus adeptos, e os torna semelhantes aos que, por natureza, são bravíssimos.

Quando, porém, Sócrates começa a falar, e relata o seu diálogo imaginário com Diotima, a estrangeira, o amor se transfigura no diálogo platônico, da mesma maneira por que mais tarde se transfiguraria no diálogo evangélico, entre Jesus e Madalena. Sócrates não defende a tese do amor como estímulo da coragem na guerra, mas como necessidade fundamental dos seres, humanos ou não, que buscam a imortalidade através das vicissitudes da vida mortal. É o que ele põe claramente à boca de Diotima, porta-voz da sua filosofia:

DIOTIMA - ... Pois o amor não é, como pensas o desejo do que é belo.

SÓCRATES - Que é, então?

DIOTIMA — É o desejo de procriação no belo.

SÓCRATES - Talvez.

DIOTIMA - Talvez, não, mas seguramente o é. E sabe qual a importância da procriação? É que ela representa algo perdurável: para um mortal, é a imortalidade. Ora como vimos há pouco, o desejo de imortalidade é inseparável do desejo do bem, pois o amor consiste no desejo da posse perpétua do bem, e disso resulta que o amor é também o desejo de imortalidade.

Mas a procriação não é apenas função do corpo. Há uma forma de procriação que é superior à física, e por isso mesmo anula os meios físicos de procriar. O amor aparece então num plano diferente, ligando as criaturas por laços espirituais. Madalena conhecia o amor na sua forma carnal. Jesus adverte de que o amor não reside na carne e lhe abre as perspectivas do espírito. Sócrates o antecipa nesse gesto, ensinando aos gregos a beleza do amor em sua função espiritual.

 Aqueles cuja fecundidade reside no corpo – diz ainda no Banquete – dirigem-se de preferência às mulheres, e assim realizam a sua maneira de amar, acreditando que atingem a imortalidade pela criação de filhos, bem como a celebridade e a felicidade eternas. Mas os que desejam procriar pelo espírito – pois há pessoas que mais desejam com a alma do que com o corpo (e esta é mais fecunda que aquele) –, esses anseiam por criar o que compete à alma Que criação será esta? A do pensamento e das demais virtudes. A criação desses homens a quem chamamos poetas, e a dos outros a quem chamamos inventores.

Basta isso para nos mostrar a que extremos Sócrates conseguiu levar a revolução sofística, modificando em profundidade a atitude grega em face dos problemas da vida e do mundo. Quando a própria camaradagem guerreira, pântano em que desabrocha a flor negra da pederastia helênica, é por ele transformada na camaradagem intelectual, em que floresce a sabedoria, o seu gênio revolucionário atinge as culminâncias do divino. E é nisto que ele supera, em tamanha extensão e tão grande altura, o gênio revolucionário de Protágoras, deixando de ser o seu continuador, para se tornar quase o seu antípoda.

 

O HOMEM DO POVO

 

                Embora não se possa fazer de Sócrates um homem do povo, no sentido atual dessa expressão, e apesar das acusações da aristocracia que lhe são feitas, parece que é essa a melhor maneira de se definir a sua posição na sociedade grega. Não era um aristocrata, pois pertencia à classe média, como já vimos pela sua filiação. E, se mantinha relações com as mais altas personalidades, chegando mesmo a frequentar as rodas intelectuais, por outro lado vivia em contato com artesãos e trabalhadores vulgares. Se o conhecemos através das referências de discípulos aristocratas, isso se deve à impossibilidade em que se encontravam os outros de se projetarem na história.

Diógenes Laércio oferece-nos informações curiosas a respeito de Sócrates. Diz que era honesto e econômico, duas qualidades que melhor o entrosam na classe média. E acrescenta que a sua temperança era tão grande que, comendo pouco, nunca foi atingido pela peste que várias vezes assolou Atenas. Sofria perseguições e violências sem se aborrecer, e não pedia recompensas pelos serviços que prestasse. O próprio Aristófanes, que o critica acerbamente em As Nuvens, também lhe reconhece os méritos. Não obstante, Diógenes Laércio nos diz que Sócrates teria sido bígamo, o que contrasta com as informações anteriores de temperança. Essas contradições não são de estranhar quando compreendemos a dificuldade de informações exatas naquele tempo.

De acordo com as informações de Aristóteles, mais amplamente conhecidas, Sócrates era casado com Xantipa, da qual teve um filho, Lamproclo. Em segundas núpcias, teria se casado com Mirto, filha de Aristides, o Justo, da qual obtivera dois filhos: Sofronisco e Menexeno. Entretanto, diz Diógenes, querem alguns informantes que ele primeiro se casasse com Mirto, e depois com Xantipa, ainda em vida daquela. Como isso teria sido possível? Baseado em Sátiro e Jerônimo de Rodes, diz Laércio que Atenas se encontrou a certo momento desfalcada de homens, em virtude das guerras e das pestes, tendo-se então permitido aos cidadãos que tivessem duas mulheres. Sócrates, como bom cidadão, não teria negado a sua contribuição ao reerguimento demográfico de Atenas.

Já vimos que Sócrates não fazia distinções entre os homens, considerando-os a todos como igualmente aptos à sabedoria. Isso nos mostra o seu espírito democrático, a sua vocação popular. E essa atitude é confirmada por uma informação curiosa de Laércio, segundo o qual Sócrates se recusara a receber alguns criados que Cármides lhe oferecera para trabalharem com ele. Tratava-se, evidentemente, de escravos, e outra informação nos dará o motivo dessa recusa: Sócrates considerava o ócio como uma das melhores coisas que o homem pode ter, em virtude de lhe proporcionar a sabedoria. E certa vez propôs a Críton o resgate de Fédon, conseguindo libertá-lo da escravidão para transformá-lo num filósofo.

Compreende-se facilmente que Sócrates não aceitasse escravos, pois teria de sentir-se como um espoliador. E tanto maior seria o seu crime, quanto sabia estar roubando a alguém o melhor de todos os bens, que é a sabedoria, para mantê-lo no maior de todos os males, que é a ignorância.

Das suas mulheres, se realmente houve duas ou dois matrimônios. Foi Xantipa quem se tornou célebre, em virtude ao mesmo tempo do seu mau gênio e do amor que devotava ao filósofo. Muitas anedotas são contadas a respeito de Xantipa, que parece ter sido irascível e palradora. Certa vez, depois de destratar o filósofo com tremenda descompostura, lhe atirou um balde de água. Sócrates limitou-se a declarar que depois da trovoada é natural que venha a chuva. A Alcebíades, que lhe censurava a tolerância com a mulher, respondera que o bom cavaleiro deve aprender com as piores montarias, para depois lidar com as outras.

Conta Laércio que Xantipa um dia lhe arrancou a capa no fórum e, instado pelos familiares a castigar a mulher, Sócrates se recusou a isso. Por outro lado, Xantipa surge em muitas anedotas como preocupada com Sócrates, interessada no seu bem-estar e na sua boa figura perante os amigos. E é tocante o episódio, muito conhecido, da sua corrida à prisão, quando se lançou para Sócrates clamando contra a condenação injusta a que o haviam submetido. O filósofo se limitara a responder: — "E querias que fosse justa?".

Aristófanes oferece-nos uma imagem bastante popular de Sócrates, não obstante as referências satíricas que lhe faz: "Andando descalço e sofrendo trabalhos sem cessar, mostra não obstante um semblante sempre grave". Diógenes Laércio afirma que "[…] por mais fome que tivesse, nunca se fez pesado a ninguém".

Tudo isso nos revela uma figura popular, de procedência mediana, filho de um escultor e uma parteira, e ele mesmo escultor antes de se tornar filósofo. Desprovido de posses, desinteressado das transações comerciais que, no seu tempo, como hoje, enriquecem os homens, apegado ao estudo e à meditação, Sócrates só conseguiu formar ao seu redor um grupo aristocrata, que se incumbiu da sua celebridade, em virtude do seu gênio.

 

CONDENAÇÃO E MORTE

 

A Atenas se poderia aplicar a apóstrofe de Jesus a Jerusalém, a cidade que matava os seus profetas. Vimos, no capítulo referente a Protágoras, como Atenas foi implacável para com o grande sofista. Diógenes Laércio apresenta uma relação de injustiças bastante curiosas: os atenienses multaram Homero em cinquenta dracmas, considerando-o louco, e fizeram o mesmo a Tirteu e a Astidamante. Entretanto, para sermos justos, temos de lembrar que Atenas se arrependeu da condenação de Sócrates e até mesmo a vingou, desterrando os seus acusadores, condenando um deles à morte e honrando o filósofo com uma estátua de bronze, feita por Lisipo e colocada numa galeria de varões ilustres. Laércio diz ainda que os atenienses fecharam seus ginásios e palestras em homenagem ao filósofo injustiçado.

 O processo movido contra Sócrates foi dos mais movimentados e tem sido objeto das mais diversas interpretações. Entendem uns que Sócrates foi acusado de herege, de não crer nos deuses e inventar outras divindades que seriam, afinal, apenas o seu próprio demônio. Outros, que o filósofo foi acusado de corromper a juventude, desviando-a do cumprimento das tradições e do respeito às divindades locais.

Para Windelband, Sócrates foi vítima do rancor dos democráticos contra a ilustração filosófica, o que de certa maneira coincide com os motivos anteriores. Menzel, que realizou meticuloso estudo do processo sob o ponto de vista jurídico, entende também que a condenação decorreu por motivos políticos, pois Sócrates representava um perigo para a restauração do poderio ateniense, com base nas antigas tradições, que a nova democracia tentava realizar.

Quando se procedia ao julgamento de Sócrates, ocorreu um incidente que bem nos revela a tensão de espírito reinante no ambiente. Justo Tiberiense é quem o revela, segundo Laércio. O jovem Platão subiu inesperadamente à tribuna e iniciou um discurso com as seguintes palavras: "Sendo eu, ó atenienses, o mais jovem dos que já subiram a este lugar...". Mas não pôde prosseguir, diante da grita geral dos juízes, determinando que ele descesse da tribuna. Platão viu-se obrigado a descer, tendo de assistir ao julgamento, de que mais tarde nos deixaria um relato emocionante e minucioso, em sua Apologia de Sócrates, fonte em que hoje se abeberam todos os que escrevem sobre o episódio.

Diógenes Laércio entende que o motivo real da condenação de Sócrates foi a inveja, provocada pelo pronunciamento da Pitonisa de Delfos sobre a sua sabedoria. Anito e Melito teriam sido atingidos pela acusação indireta de ignorância. Diógenes diz mesmo que Anito incitou Aristófanes contra Sócrates, e por fim conseguiu que Melito o acusasse de ímpio e corruptor da juventude. Formou-se assim, com esses dois e mais o orador Lícon, o trio dos acusadores: um político restaurador, um poeta trágico obscuro e um retórico sem prestígio. A oração de acusação, segundo Diógenes, teria sido escrita pelo sofista Polícrates ou pelo próprio Anito.

Lísias quis salvar a Sócrates e escreveu uma apologia em sua defesa. Leu-a para o filósofo, que respondeu serenamente ao amigo: "É uma boa peça, Lísias, mas não me convém". E como este houvesse estranhado a contradição (pois se era boa, por que não convinha?), Sócrates esclarece: "Pois não pode haver roupas e calçados excelentes, que não sirvam para mim?". É que Lísias confessava o erro e pedia perdão aos juízes. Sócrates, que detestava os sofistas e os militantes do foro, que combatia as chicanas forenses em defesa da verdade e da justiça, não poderia aceitar essa espécie de defesa, juridicamente boa, mas moralmente má. Platão nos conta ainda a recusa de Sócrates em fugir da prisão, quando podia facilmente escapar da morte.

Em 399 a. C., no tempo correspondente ao nosso mês de maio, Sócrates bebeu a taça de cicuta, deitou-se e morreu, serenamente, consolando os discípulos que choravam ao seu redor. Platão descreve no Fédon, de maneira tocante, o episódio da morte do filósofo. Tomando a taça de cicuta das mãos do carrasco, Sócrates lhe perguntou se podia fazer uma libação aos deuses. O carrasco respondeu que a dose de cicuta era a exatamente necessária, ao que o filósofo retrucou: "Entendo. Mas pelo menos me será permitido, e é mesmo um dever, dirigir uma oração aos deuses, pelo bom êxito desta mudança de residência, deste mundo para o Além. E esta é a minha prece. Assim seja!".

"Em seguida, — diz Platão — sem sobressalto, sem relutar nem dar mostras de desagrado, bebeu a taça até o fim". Os discípulos que o cercavam caíram em pranto, mas Sócrates os advertiu: "Que é isso?   Que incompreensão! Mandei as mulheres embora para evitar esta cena, pois me ensinaram que é com belas palavras que se deve morrer. Acalmai-vos, vamos, dominai-vos!".

Depois de andar pelo aposento, disse que sentia as pernas pesadas e deitou-se. A morte o foi envolvendo aos poucos. Suas últimas palavras foram estas: "Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar a dívida". Era um sacrifício ao deus da medicina — o Esculápio dos romanos — por lhe ter permitido morrer prontamente, livrando-se o quanto antes do peso do corpo.

 

Texto publicado originalmente no livro OS FILÓSOFOS, Ed. Paidéia.

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