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PRELIMINARES

 

A filosofia é um ato de contrição e um exame de consciência. Quando o homem se sente cansado das solicitações exteriores, volta-se para si mesmo, procurando beber novas forças e nova luz na fonte oculta do coração. Mergulhar em si mesmo, esquadrinhar os próprios pensamentos, sondar os anseios que disfarçam intenções secretas para descobrir no fundo de si, como no fundo do poço, a pureza da verdade nua, isso é filosofar. E todos o fazem, todos são obrigados a fazê-lo. A filosofia, dizia o nosso filósofo Farias Brito, é uma atividade permanente do espírito.

 

Mas assim como para andar precisamos de uma fase de exercício e aprendizado, para pensar precisamos de um critério de clareza, para sentir devemos orientar o coração, assim também para filosofar precisamos aprender a ciência do mergulho em nós mesmos. E como aprendê-la melhor, senão pelo exemplo daqueles que a praticam, e se possível até mesmo no seu convívio? Daí o interesse de livros em que a filosofia é apresentada na dinâmica do seu processo histórico, marcando seus próprios rumos através da ação e do sofrimento dos homens. Por falhas ou débeis que se apresentem, essas tentativas de mostrar a filosofia em ação contribuem sempre para aguçar e orientar o nosso espírito.

As definições de filosofia são muitas, e não raro contraditórias. A melhor e a mais profunda, segundo cremos, é ainda a da resposta de Pitágoras a Leonte: amor da sabedoria. Em sentido moderno, dentro das exigências de precisão do nosso tempo, diremos que a filosofia é a crítica do conhecimento. Embora a restrição pareça excessiva, não damos à expressão o sentido kantiano, mas um sentido mais amplo. Desde que começou a pensar, o homem sentiu a necessidade de criticar, de tempos em tempos, o conhecimento do mundo que elaborara em sua mente. Esse é o processo da filosofia, a sua função, o seu sentido, a sua natureza.

O leitor pode ver isso nos primeiros capítulos deste livro, pelo exemplo histórico. A filosofia grega é um processo completo, um mundo inteiriço, que nos proporciona a visão integral do desenvolvimento do pensamento numa grande civilização. Vemos nela, a partir de Pitágoras, como a reflexão filosófica renova sem cessar as formas do conhecimento.  Dos fisiólogos da Escola de Mileto, já libertados do orfismo pitagórico, até o episódio dos sofistas, há um verdadeiro desenrolar dialético da história do pensamento, através da crítica. Sócrates, Platão e Aristóteles completam esse processo, que por fim se dilui na fase helenística, esmaecendo no tempo como os lampejos cada vez mais tênues de um entardecer.

Por sua função e por sua natureza, portanto, a filosofia se distingue da ciência. Ao contrário desta, não tem objeto exterior. Ela mesma é o seu objeto. Quando os cientistas se debruçam sobre os fenômenos para investigar a natureza, estão operando no exterior. Mas quando os filósofos se debruçam sobre o próprio pensamento, operam no interior de si mesmos. Seu processo de pesquisa é o monólogo, e seu método de exposição é o diálogo. Não se pense, porém, que o monólogo filosófico possa ser um solilóquio inconsequente.

Ao monologar sobre as suas próprias concepções, as suas experiências, o seu conhecimento do mundo e da vida, e inclusive de si mesmo, o homem opera sobre os resultados não só das suas relações íntimas e externas, mas também do processo histórico que o envolve. Foi por isso que Dilthey concluiu que a filosofia é ciência do real. Procuramos, neste livro, conduzir o leitor através da história da filosofia, e não apenas contar-lhe a vida e expor-lhe a obra isolada de alguns filósofos. Para isso, nosso critério de escolha não foi pessoal, mas histórico, recaindo em nomes que representam períodos, e nos quais, segundo supusemos, poderíamos centralizar a visão desses períodos.

Assim, em vez de uma simples coleção de vidas e doutrinas, tentamos dar ao leitor um esboço, embora linear, da vasta e profunda epopeia do pensamento, que é a história da filosofia. Como não podia deixar de ser, não nos limitamos à exposição, mas tecemos também os nossos comentários, filosofamos à margem de fatos e doutrinas, sempre com o cuidado de não exagerar, para não furtar ao leitor o seu próprio prazer de filosofar.

Tratando-se de um livro que se destina ao grande público, evitamos o quanto pudemos a terminologia técnica e usamos um processo que nos parece muito útil neste caso em especial: o jogo de imagens e comparações, para ajudar o leitor a fixar, no tumulto das ideias e das teorias, alguns momentos importantes. Nem por isso deixamos de analisar alguns pontos controversos.

Não sendo, embora, um compêndio escolar, este livro pretende auxiliar os que estudam; não sendo uma obra de debate, pretende colocar alguns problemas; não sendo livro de simples leitura ociosa, deseja servir para alguns momentos de distração; e não sendo uma história completa da filosofia, aspira a oferecer ao leitor um panorama geral da mesma. Em certos casos, estendemo-nos mais no trato da vida do filósofo do que da doutrina, porque aquela nos pareceu mais fecunda para a visualização dos problemas em questão. Noutros, fizemos o contrário, e noutros, ainda, demos preferência, ou carregamos mais, na análise da época. O objetivo foi sempre o de dar ao conjunto a possibilidade de descortinar para o leitor as mais úteis perspectivas. Esperamos ter conseguido o nosso intento, mas só o público poderá responder se acertamos.

Alguns leitores poderiam estranhar que não tivéssemos centralizado a Idade Média em Tomás de Aquino, ou que tenhamos iniciado a nossa história por Pitágoras e não por Tales. É que Pitágoras, apesar ou justamente por sua impregnação órfica, representa melhor o nascimento da filosofia. E quanto à Idade Média, nenhuma figura nos parece melhor para representá-la e centralizá-la do que a de Abelardo, não só pelo seu imenso conteúdo dramático, que nos oferece toda a gama do colorido medieval, como também pela sua importância na querela dos universais, e ainda pelo sentido de antecipação histórica da sua posição em face do Renascimento. Para centralizar as influências árabes e judaicas desse período, escolhemos um filósofo mais conhecido como sociólogo e no geral desconhecido entre nós: Ibn Khaldun, cuja obra começa a ser divulgada em nosso país, graças ao belo trabalho de tradução realizado pelo casal José e Angelina Koury. Note-se que escrevemos centralizar, o que vale dizer que tomamos Khaldun como peão. Mas estamos quase confessando que ele nos absorveu de tal maneira, pela grandeza de sua obra, que giramos pouco ao seu redor.

A questão da filosofia brasileira, que desejávamos abordar na figura e na obra de Farias Brito, tivemos de deixar para outra oportunidade, por falta de espaço. É possível que no correr de a1guns capítulos tenhamos pisado inadvertidamente em canteiros alheios. Nesse imenso Jardim de Epicuro que é a história da filosofia, nem sempre conseguimos andar pelos passeios.

Caso isso tenha acontecido, pedimos aos nossos leitores que não nos acusem precipitadamente. Às vezes podemos coincidir com opiniões alheias, e outras, é possível que as tenhamos endossado, a ponto de confundi-las com as nossas.

Escrever sobre questões de filosofia é hoje uma temeridade. Porque a filosofia tornou-se de tal maneira complexa, um mar profundo e amplo, que nenhum nadador, por mais experiente, consegue dominar as suas vagas em toda a extensão da superfície. Isso não impede que tentemos as nossas braçadas. Se as grandes profundidades nos são interditas e se o mar largo oferece perigos que não podemos enfrentar, resta-nos o remanso das praias, com postos de salva-vidas à vista. De qualquer maneira, podemos assim tomar o gosto da água salgada, experimentar a força das ondas, tocar com a ponta dos pés a areia fina e movediça dos lugares menos perigosos. E é sempre melhor esse exercício do que ficar em casa e olhar o mar pela janela.

Aos grandes eruditos, que podem nadar sozinhos em meio aos tubarões do mar alto, agradeceremos o olhar de condescendência que lançarem a estas páginas. Há pessoas que, pelo hábito do julgamento próprio, olham-nos sempre do alto. São mais ou menos como aqueles homens "mais do que homens”, de que falava Descartes. Pedimos-lhes encarecidamente não pensarem que estamos querendo emparelhar-nos com elas. Esta obra não pretende elevar-se às alturas, mas correr entre os homens do povo, de mão em mão.

Aos jovens estudantes ou apenas estudiosos, que não encontrarem nestas páginas muitas novidades, ou todas as explicações que desejam, lembraremos as palavras do Eclesiastes do sábio rei de Israel:

Todas as coisas são difíceis; o Homem não as pode explicar com palavras.  O olho não se farta de ver, nem o ouvido se enche de escutar. Que é o que foi? É o mesmo que o que há de ser. Que é o que se fez? É o mesmo que o que se há de fazer. Não há nada que seja novo debaixo do sol, e ninguém pode dizer: Eis aqui está uma coisa nova. Porque ela já houve nos séculos que passaram, antes de nós.

Assim entendido, assim esclarecido o nosso propósito e prevenido qualquer despropósito — pois se um homem prevenido vale por dois, um leitor ou um crítico prevenidos são pelo menos mais dóceis — passemos aos nossos filósofos e às suas ideias. E como a história é longa e difícil, procuremos amenizá-la com um tom romanesco, de quando em quando. Mesmo porque, se uma coisa não falta nessa epopeia do pensamento, é o colorido humano de suas fases.

Ainda uma advertência: para permitir a maior fluência do texto não indicamos as páginas das citações de frases e trechos, e às vezes nem mesmo os livros, já referidos no desenrolar do assunto. Não quisemos fazer, tampouco, as habituais remissões de pé de página, nem as de fim de volume. Juntamos, porém, a indicação da bibliografia utilizada, de maneira que os leitores interessados poderão esclarecer qualquer dúvida quanto às citações.

Texto publicado originalmente no livro OS FILÓSOFOS, Ed. Paidéia.

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